O filme fascinante e desconcertante que revela tudo o que está por baixo da superfície de todos nós

O filme fascinante e desconcertante que revela tudo o que está por baixo da superfície de todos nós

O desejo de fazer da vida algo mais que se enterrar vivo num lugarejo qualquer e esperar a chegada da morte torna-se ideia fixa para todo adolescente com alguma ambição, ou seja, 99,9% deles. Estudar, fazer novos amigos, tratar da própria rotina do jeito que considera mais adequado, arcar com o peso de suas escolhas, as boas e, sobretudo, as ruins, essa é a ordem natural das coisas. Mas e quando a vida passa por nós como uma jamanta desgovernada e deita tudo fora?

Veludo Azul (1986) é uma pancada atrás da outra — quase que não só do ponto de vista da metáfora. Uns dos filmes mais controversos do doidão David Lynch, aquela época no auge, mas ainda com muita lenha para queimar, a história, enérgica, leva muita gente na conversa. Existem os que acham que o filme não passa de um neo-noir sem maiores consequências e, claro, sai impactado ao fim de quase três horas de projeção, no tratamento sem cortes do diretor, ao passo que outro tanto se prepara para todo o tipo de bizarrice, e se depara com um filme poético, onírico, que preza por conservar a aura de sonho (ou delírio), essa, sim, uma marca registrada do DNA criativo de Lynch. Tanto num como no outro recorte, há os que reconheceram o talento do diretor e os que praguejaram que teria sido muito melhor que não tivesse dito nada, se não tinha nada de relevante ou de novo a dizer.

Misturando no mesmo balaio o frenesi da descoberta do sexo, da liberdade conquistada a duras penas num país desde sempre paranoico, cheio de fascistoides e fiscais da moral alheia — o que nem de longe é uma exclusividade ianque, frise-se — e a criminalidade galopante, mesmo numa cidade pequena como Lumberton, na Carolina do Norte, “Veludo Azul” é um retrato dos Estados Unidos de meados da década de 1980 (não que a rota tenha sido totalmente corrigida, muito pelo contrário, como atestam os eventos de 6 de janeiro de 2021, quando da invasão por vândalos de ultradireita do Capitólio e da Casa Branca, em Washington). David Lynch envolve sua história em uma sátira tão rica e tão pouco pretensiosa que é capaz de empurrar o filme para além do rio Grande, em que o resto do mundo reconhece as eventuais piadas internas, mas também é chamado às falas.

O diretor se equilibra em meio a essas duas realidades. Ao se estender sobre o dia a dia em Lumberton, Lynch põe o dedo na ferida da América idiotizada, em que a população parece congelada num dos piores episódios de uma sitcom vagabunda. Em paralelo, o diretor não se esquece de abordar as questões que são a própria razão de ser de seu trabalho. A Dorothy Vallens de Isabella Rossellini incorpora grande parte da dor que o filme se esmera por analisar. Completamente subjugada, bestializada muito por causa da condição a que aceita se sujeitar, Vallens é a representação da mulher que se sacrifica por marido e filho, à custa da própria dignidade, se preciso. Conforme se habitua àquele modus vivendi desumano, a personagem chega à conclusão de que está no lugar certo, uma vez que desenvolve uma perversão que a faz não só tolerar, mas gostar de ser o objeto capaz de realizar os desejos licenciosos de alguém. A entrada de Jeffrey Beaumont em cena só serve para ratificar isso; numa das melhores performances da carreira, Kyle MacLachlan entrega um trabalho preciso na pele do estudante que se encontra subitamente cercado pela vida. Beaumont, forçado a voltar a Lumberton por causa da iminência da morte do pai, aos poucos começa a retomar sua vida na cidadezinha nos pormenores mais indetectáveis, inclusive no namoro com Sandy Williams, de Laura Dern, filha do detetive da polícia local. A narrativa mergulha em sua porção mais profundamente lynchiana no momento em que o personagem de MacLachlan faz uma descoberta assustadoramente inusitada, sendo assim arrastado para o centro do mistério do longa. Ao longo dessa jornada é que conhece a cantora de boate interpretada por Rossellini.

Na sequência em que o protagonista se esconde num armário, depois de invadir o apartamento de Vallens, e a flagra transando com Frank Booth, vivido por Dennis Hopper, “Veludo Azul” deixa de ser apenas lynchiano e torna-se também um filme que remonta diretamente a Alfred Hitchcock (1899-1980). O centro de toda a tensão da trama se desloca para esse núcleo, quando ao surpreender Beaumont atocaiado em seu armário, Vallens reage bem ao gosto do Mestre do Suspense, em passagens muito próximas às que apresentara em “Psicose” (1960), com a diferença fundamental de que em “Veludo Azul” o sexo, e não a morte, é que tomam o proscênio — malgrado aqui um e outro sejam quase um só ente.

É essa relação patológica entre sexo e violência que passa a ser a tônica no filme. Assinalado por referências pop em boa parte do roteiro, “Veludo Azul” vai apontando para o desfecho de esperança, retomando as imagens de Lumberton como um lugarejo bucólico, em que o céu parece mesmo se assemelhar à cama macia em que parte da humanidade há de se deitar algum dia. As atuações de Isabella Rossellini, Kyle MacLachlan e Laura Dern, nessa ordem, corajosas, são dignas do filme e vice-versa.

O argumento da suposta pseudointelectualidade de David Lynch cai por terra. Em “Veludo Azul”, o diretor se permite ver não só como um grande artista, mas como o pensador invulgar que sempre fora, aperfeiçoando seu olhar à luz de produções cada vez mais atrevidas, espirituosas e vesanas, por que não? A essa altura do campeonato, com um Oscar pelo Conjunto da Obra, em 2020, um dos gênios incompreendidos de Hollywood decerto já sublimou a reputação de velhinho maluquinho. Hoje talvez até dê sonoras gargalhadas dela.


Filme: Veludo Azul
Direção: David Lynch
Ano: 1986
Gênero: Suspense/Drama/Terror
Nota: 9/10