Assustador e magnífico, candidato ao Oscar 2022 é um dos filmes mais doloridos e fundamentais da Netflix

Assustador e magnífico, candidato ao Oscar 2022 é um dos filmes mais doloridos e fundamentais da Netflix

Há pelo menos duas décadas, a Igreja Católica vem tendo de lidar com um problema grave ao longo de sua história, mas só então posto à luz. Se antes casos de abuso sexual de crianças e adolescentes cometidos por clérigos restavam abafados para sempre, desde 2002, quando a imprensa tomou pé da situação, estampando em suas manchetes eventos assombrosos dessa natureza, esses episódios não ficam mais para as calendas, esperando que a sociedade se esqueça deles à medida que o tempo passa.

Robert Greene se impôs uma empreitada difícil, mas também estimulante, com “No Caminho da Cura”. Em 2018, a entrevista de seis homens de meia-idade de Kansas City chamou-lhe a atenção. Os seis haviam sido vítimas de estupro por sacerdotes católicos, e quanto mais fundo se ia mais grossa a lama se tornava. O esquema foi adquirindo o caráter de uma verdadeira organização criminosa, em que o Vaticano teria dado guarida a 230 padres daquela diocese envolvidos diretamente no tráfico de crianças para fins sexuais, punindo sem rigor ou mesmo apenas tolerando e até ignorando os abusadores, e não só lá. Três anos antes, “Spotlight — Segredos Revelados” (2015) esquadrinhara didaticamente o modus operandi da quadrilha. Num drama histórico-biográfico algo similar ao formato de que Greene lança mão, Tom McCarthy detalha que, ao passo que sacerdotes eram flagrados em tais delitos, o bispo tratava de coibir qualquer investigação possível, mantendo-os longe até que tudo fosse tragado pelas brumas dos anos. A saída para se evitar um escândalo, que de tão monumental não tardou em vazar para a imprensa, era transferi-los para uma cidade distante e, claro, pagar generosas indenizações extraoficiais. Além do problema se perpetuar, por óbvio, houve um momento em que, de tão numerosas, as denúncias não cabiam mais no orçamento. Fim da linha.

Como se sabe, a ignomínia desses homens, que se valem de uma condição especial para molestar menores, quase sempre do sexo masculino, nunca mais saiu do noticiário. O diretor entrou em contato com Rebecca Randles, a advogada do grupo, que lhe dissera que estava sendo aplicada uma nova abordagem para que seus clientes expusessem seus traumas mais livremente, visando a uma possível remissão dos efeitos que a lembrança dos ataques ainda exercia sobre eles. Monica Phinne, uma dramaterapeuta que usa técnicas do teatro no intuito de ajudar pessoas violentadas a superar a experiência, foi incorporada ao projeto, e Greene enxergou nesse ponto o gancho principal de “No Caminho da Cura”.

A produção, lançada em 2021, é o registro de todo o processo. Utilizando-se de uma maneira pouco usual, o diretor divide seu documentário em duas parres mais ou menos homogêneas. No primeiro segmento, Greene traça um panorama geral dos eventos envolvendo pedofilia junto a instituições religiosas, não só católicas; no segundo, o diretor confere a “No Caminho da Cura” sua porção dramatúrgica, mas não ficcional, uma vez que baseada nos relatos de seus protagonistas. Numa espécie de terapia de grupo, instante em que o espectador toma conhecimento das histórias a serem encenadas pelos próprios analisandos, Mike Foreman, pedreiro autônomo, rememora o dia em que fora obrigado pela mãe a entregar um bolo ao padre que o havia estuprado; em seguida Dan Laurine, gerente de uma loja que aluga equipamentos eletrônicos, narra sua violação, por dois padres, durante uma pescaria, quando se hospedaram numa casa à beira lago; depois é a vez de Ed Gavagan, empreiteiro em Nova York, que proporciona o respiro cômico da trama, mesmo um ambiente em que a tensão é palpável; Joe Eldred ensaia uma volta no tempo e balbucia algumas palavras para o garoto frágil que não conseguira escapar às investidas bestiais de alguém que tomava por um santo. As confissões se encerram com o designer de interiores Michael Sandridge, ainda um devoto fiel mesmo tendo sofrido um estupro na casa paroquial da igreja que frequentava, e que empresta sua sensibilidade aos demais, fornecendo boas recomendações quanto à maneira de se compor o filme. Tom Viviano é o único que não toma parte dessa etapa da terapia, por seu caso correr em segredo de justiça, mas é um personagem onipresente em “No Caminho da Cura”. A figura rechonchuda de Viviano encaixa-se à perfeição nos papéis de padre e bispo dos enredos dos outros cinco, performances tão espontâneas quanto comoventes.

Questionando o que se convencionou entender por ser homem, Greene vai conseguindo penetrar no lado sombrio da alma de seus protagonistas, que por alguma razão houveram por bem manter a história num relativo sigilo. Alguns chegaram a expor seu drama aos pais, mas obtiveram como contrapartida a desconfiança e o ultraje, como Foreman, que depois de ter passado o pior momento de sua vida, teve de presentear seu agressor, como se no fundo fosse o responsável por sua desgraça. Decerto essa é uma das chaves que ajudam quem assiste a “No Caminho da Cura” a vislumbrar uma explicação para que o ciclo vicioso do crime sexual praticado por padres e pastores, nessa ordem, não tenha fim. Declarar publicamente ter sido alvo de um comportamento tão abjeto pode, mesmo obliquamente, depor contra quem acusa. Sempre há de restar uma dúvida, de quem quer que seja, sobre se o ofendido não teria sido merecedor de sua ofensa. Uma realidade bárbara, que as mulheres vivenciam desde que o mundo é mundo.

Com todo o tato que um trabalho dessa natureza exige, Robert Greene leva às telas um filme incômodo, que nunca resvala na leviandade e no mau gosto, mas que sequer chega perto de esboçar um desfecho para o problema sobre o qual se estende — e diante de histórias desse gênero sempre vem à baila, estupidamente, o argumento de que arte deve ser mais que elencar e jogar luz sobre as grandes questões do gênero humano, como se essa fosse uma tarefa menor. A função mais nobre do fazer artístico é instigar o homem a abandonar a vontade de se lamentar ad aeternum, tão natural e até instintiva, combater seus algozes e tirar de si um pouco de sua miséria existencial, própria ou, no caso, adquirida. Isso “No Caminho da Cura” faz irretocavelmente.


Filme: No Caminho da Cura
Direção: Robert Greene
Ano: 2021
Gênero: Docudrama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.