Suspense psicológico aterrador da Netflix é o filme mais angustiante lançado em 2022

Suspense psicológico aterrador da Netflix é o filme mais angustiante lançado em 2022

Nos últimos 20 anos, a Espanha tem adquirido destaque cada vez maior no cinema, sobretudo no cinema de terror. O movimento, iniciado em 2001 por Guillermo del Toro com “A Espinha do Diabo”, que por sua vez antecedeu “O Labirinto do Fauno” (2006), se estendeu pelo tempo e hoje abrange também produções como “O Orfanato” (2007), dirigido por J.A. Bayona, ovacionado de pé no Festival de Cannes; “O Poço” (2019), levado às telas por Galder Gaztelu-Urrutia; e “Veronica” (2017), de Paco Plaza, chegando a 2022 com todo o gás, representado por “O Páramo”.

Como se sabe, as histórias de terror só se tornam interessantes se o componente de pânico for a última coisa em que se pensa ao se elaborar a ideia principal de um filme desse jaez. Todas as tramas mencionadas no parágrafo anterior têm em alguma medida um subtexto por atrás do qual se oculta a verdadeira intenção do que é mostrado. Alfred Hitchcock (1899-1980), pai do suspense, que por sua vez é o pai do terror, só foi célebre porque tirava das situações de tensão expostas em seus filmes a matéria essencial para sustentar a narrativa e conferir-lhe a substância necessária a fim de lhe dar a base para fazer o enredo crescer, sem jamais perder de vista o todo, tampouco oferecendo um filme cuja capacidade de assustar era a maior qualidade. Hitchcockiano ainda que não o saiba, o diretor David Casademunt brinca com o público, com seus atores, com a própria história ao elevar e arrefecer a temperatura do que apresenta, deixando o que realmente interessa muito bem guardado. Até que o conflito, afinal, exploda.

Coescrito por Martí Lucas e Fran Menchón, o roteiro de Casademunt se desdobra sobre a vida de uma pequena família espanhola do século 19. Lucía, interpretada por Inma Cuesta, e o marido, Salvador, vivido por Roberto Álamo, habitam uma choupana com o filho Diego, de Asier Flores, os três completamente isolados do resto do mundo depois de uma sucessão de batalhas ao longo das Guerras Carlistas (1833-1876), que dividiram o país. A facção liderada por Carlos María Isidro de Borbón (1788-1855) pretendia destituir Isabel II (1830-1904) do trono, o que degringolou em quase meio século de lutas campais e instabilidade política. Alheios aos enfrentamentos de carlistas contra os partidários da rainha, Lucía, Salvador e Diego, vivem na ilha de pretensa tranquilidade desse lar, paupérrimo, mas acolhedor, quando a paz começa a ceder lugar ao desespero à medida que uma criatura maligna passa a espreitá-los, nutrindo-se do que neles sobra.

Não se discute que o medo é matéria-prima imprescindível num filme de terror, mas não se faz um bom filme de terror tendo como alicerce apenas a certeza de que o espectador vai sucumbir a uma de suas emoções mais primárias. A exemplo do que deixa claro já no prólogo, Casademunt se vale da política no intuito de fundamentar o que se vai assistir no decorrer de pouco mais de meia hora. Gradualmente, “O Páramo” vai esclarecendo alguns mistérios. O primeiro é que o casamento de Lucía e Salvador não parece assim tão feliz quanto se supunha, muito por causa do desvelo sem medida da personagem de Cuesta para com o filho, e, por óbvio, o garoto acaba por preferir a companhia da mãe a caçar coelhos com o pai pela pradaria. Diego rouba a cena por mais de meio filme, manifestando sua personalidade voluntariosa sempre que pode, e evidenciando que Asier Flores virá a ser um dos grandes nomes do cinema. O ator já havia superado as expectativas do público em “Dor e Glória” (2019), de Pedro Almodóvar, ao encarnar um garoto que entra em choque ao se descobrir homossexual, e em “O Páramo” Flores continua a se derramar sobre a natureza dramática de seu personagem, como no filme de Almodóvar, mas tendo uma oportunidade maior para comprovar seu talento. O ator faz de seu Diego um dos principais atrativos da história, dividindo com Inma Cuesta os momentos em que a trama torna-se mais estimulante, mormente depois que a desgraça os colhe. A partir de então, é Lucía quem dá as cartas, sem que Diego desapareça da narrativa, e quando um diretor é capaz de uma parceria tão intensa, é meio caminho andado.

Nas sequências terminais de “O Páramo”, quando a história volta a ser conduzida por Diego, e dessa vez só por ele, Casademunt prepara seu filme para o desfecho trágico — e, ainda assim, poético — que retoma o que queria dizer no início. A vida é feita de solidão e pesar, especialmente quando se escolhe fechar os olhos à realidade. Ainda que não esteja completamente maduro, o personagem de Flores terá de encarar o que lhe reserva a dureza da existência. E essa será uma longa travessia.


Filme: O Páramo
Direção: David Casademunt
Ano: 2022
Gênero: Terror/Coming-of-age
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.