Casamento é loteria. O amor sincero, e às vezes alucinado, de um homem por uma mulher, e vice-versa, nunca foi garantia quanto a se viver um relacionamento feliz, estável, pautado pela serenidade do sentimento que só se concretiza depois de muito tempo de reflexão e, assim, pode reivindicar a eternidade. Em alguns casos, esse mesmo amor, que se vai transformando com o passar do tempo, torna-se justamente a fonte de todos os problemas de um casal, porque não se compreende mais sua essência.
Em “Blue Valentine”, o diretor Derek Cianfrance leva à cena uma das tantas neuroses da vida a dois partindo de hipóteses que o filme responde ao longo de seus 112 minutos. No caso de Dean e Cindy Hellers, subentende-se que havia o amor, sempre houve, mas havia também a imaturidade, a afoiteza, a vontade de celebrar aos quatro cantos a descoberta de algo maior que a vida, que precisava ser sacramentado. E é aí que a receita desanda.
Os personagens de Ryan Gosling e Michelle Williams experimentam a tal crise dos sete anos com alguma antecedência. Nenhum psicólogo, terapeuta de casal ou matemático nunca conseguiu comprovar o postulado que enuncia que, aos sete anos de união, todos os casais passam por um abalo, em maior ou menor proporção, capaz de levá-los a resoluções fatídicas que implicam automaticamente em segurar o rojão e seguir juntos na aventura da vida ou tomar cada qual o seu rumo e deixar que outra vida se encarregue dos dois, e nem poderia. Por mais que os especialistas se esmerem em traçar planos de sucesso para quem se atreve a juntar as escovas de dente em tempos difíceis como os nossos, a verdade é que nem todo mundo vivencia os conflitos próprios de um casamento durante o sétimo aniversário do matrimônio, pode ser antes, pode ser depois, pode não ser nunca. Tudo isso não passa de estatística: convencionou-se tomar o sete, um número mítico e místico, relacionado a completude, a fechamento de ciclos desde a antiguidade — Deus fez o mundo em sete dias, e sete são os pecados capitais, um para cada dia da semana, para ficar em apenas dois exemplos — porque algum sabido chegou à conclusão de a maioria dos divórcios se dá entre o quinto e o nono ano de casados. É o mesmo que dizer que se somarmos a quantidade de negros ao número de brancos e dividirmos o resultado por dois, chegaremos à porcentagem de mestiços sobre a Terra. A verdade é que se inventa de quase tudo para se vender livro.
O homem põe e Deus dispõe, diz a voz rouca das ruas, mas prefiro Machado de Assis (1839-1908). Falando sobre as trapaças do coração, o Bruxo do Cosme Velho, também mencionando a Providência, disse que Deus havia inventado a fé e o amor, mas o diabo, o senhor do engano, o pai da mentira, fez com que confundíssemos fé com religião e amor com casamento. Quanto à primeira parte do anexim, não digo nada, fé é matéria muito pessoal, íntima; tenho absoluta certeza de que Deus existe e compreendo perfeitamente o agnóstico que duvida da existência de Deus, ou por covardia, por não querer se comprometer, visto que não sabe para onde vai depois daqui, como diz a velha piada, ou por uma questão puramente racional mesmo, bem como tenho profundo respeito pelos que dizem, a exemplo da minha crença sólida no Criador, que Deus é um delírio. Falta ao ateu a experiência vívida que lhe permitiria dizer com todas as letras que passou por um grande apuro, do qual não sairia sozinho, e encontrou luz no fim do túnel, ou sensatez para entender que o homem é, sim, responsável por boa parte de seus males, o famoso livre arbítrio, um conceito mais surrado que a piada de que falei anteriormente. Quanto à frase meio cínica (mas lapidar) de Machado, é verdadeira, mas questionável, como tudo na vida, aliás. Talvez tenha querido dizer — e quem sou eu para botar palavras na boca dele — que o amor não precisa da Igreja por testemunha, mas do Céu. E foi esse o maior erro do pintor de paredes e da enfermeira do filme de Cianfrance.
Quando Dean e Cindy se apaixonaram, as vidas de um e de outra eram completamente distintas. Um dos grandes riscos para um casamento longevo, que só tem de ser duradouro se feliz, é acreditar que tudo será como naquele instante mágico em que duas almas se reconhecem e o mundo para de girar — e os anjos tocam sinos, conforme o clichê, piegas, mas bonito. Não vai; a não ser que se trate de dois milionários (ou de um milionário que se dispõe a sustentar a amada, ou o oposto), casar significa dividir alegrias e tristezas, mas também boletos e prestações, e na sequência vêm os filhos, às vezes rápido demais. O marido e a mulher se tornaram pai e mãe, de Frankie, vivida por Faith Wladyka, logo no princípio dessa nova vida, e aí, de fato, um elo além do amor e além da própria vida se havia cristalizado. Compreender que o casamento é uma relação que envolve também os filhos é a maior manifestação de amor que um cônjuge pode proporcionar ao outro, mas como em “História de um Casamento” (2019), Frankie, porque ainda muito pequena, fica à deriva, como Henry no filme de Noah Baumbach, perdida em meio a um homem e a uma mulher crescidos, que deveriam se responsabilizar por seu fracasso, assumir que não faz mais sentido continuarem juntos por uma série de razões, mas preferem culpar alguém que não pode se defender, aproveitando para afogar suas mágoas na bebida e no trabalho.
As performances de Gosling e Williams, irretocáveis, dão ao público a dimensão de como Dean e Cindy vão se metamorfoseando no decorrer de “Blue Valentine”, a ponto de ser até engraçado dizer que o intérprete daquele sujeito feioso por trás de óculos fora de moda e calvas abissais é o mesmo ator de “Drive” (2011), dirigido por Nicolas Winding Refn, e “Blade Runner 2049” (2017), de Denis Villeneuve, onde expõe sem medo sua faceta de galã, certo de que seu talento fala mais alto até quando escapa da melancolia desses tipos e se arrisca em produções solares como no musical “La La Land” (2016), levado às telas por Damien Chazelle. O mesmo se pode dizer de Michelle Williams, que deixa patente a deterioração espiritual que colhe sua Cindy a dada altura do roteiro de Cianfrance, Joey Curtis e Cami Delavigne. Malgrado não seja submetida às mesmas mutações físicas de Gosling, Williams não permite que ninguém duvide de que há uma alma que se despedaça por baixo daquele corpo já franzino, como em “Manchester à Beira-Mar” (2016), de Kenneth Lonergan, ou com uma porção ainda maior de esgotamento no western de Ang Lee, “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005). Cindy é uma mulher aprisionada não só em sua vida, mas em seu próprio corpo, um drama existencial que o desempenho minimalista de Michelle Williams capta bem, sem a necessidade de nenhuma sorte de truque. Decerto Gosling não poderia ter melhor companheira de cena, uma vez que, como ele, a atriz deita e rola ao compor tipos atormentados.
Derek Cianfrance opta acertadamente por deixar de lado os motivos mais comuns (e mais apelativos) para que um relacionamento amoroso soçobre — doenças, acidentes, a morte e o mais devastador de todos, a morte de um filho — para se concentrar apenas nas únicas razões que contam a fim de se contornar as tantas adversidades de um casal. Em meio aos fogos de artifício de um amor que desabrocha, espoca também a languidez do amor maduro, que virou outra coisa. É disso que “Blue Valentine” é feito.
Filme: Blue Valentine
Direção: Derek Cianfrance
Ano: 2011
Gênero: Romance/Drama
Nota: 9/10