Alguns cineastas têm o dom de tratar de temas simples, quase banais, com tamanha profundidade que o público se espanta. Em A Estrada da Vida (1954), Federico Fellini (1920-1993) tece sua compreensão reveladora das tantas misérias humanas num de seus filmes menos esteticamente sofisticados, mas por isso mesmo tão marcante. Valendo-se de imagens que impor-se-iam como sua assinatura — a aura mágica do circo; a solenidade mambembe dos desfiles; a falsa dicotomia entre a terra e céu; a mulher, criatura que ninguém pode explicar muito bem; e, por óbvio, a placidez selvagem da praia —, Fellini fez de “A Estrada da Vida” o preâmbulo para se estender com mais fôlego pelas necessidades do homem, as espirituais e as da carne, juntas, pela vida afora.
Um dos trabalhos inaugurais do diretor, surgido dois anos depois de “Abismo de um Sonho” (1952), “A Estrada da Vida” une o neorrealismo, ubíquo na Itália pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e parte indissociável da constituição artística de Fellini, às abundantes menções autobiográficas a que recorreu em todos os seus filmes, excentricidade narrativa que compôs um resultado original, por si capaz de conferir genialidade a seu trabalho; entretanto Fellini foi além. Ao contrário do que querem fazer crer certos críticos, este não é nem de longe o melhor filme de Fellini, cuja carreira foi das mais profícuas da história do cinema, mas foi um começo promissor, uma aposta que se provou acertada (e mesmo profética) do produtor Dino di Laurentiis (1919-2010). Repita-se: “A Estrada da Vida” foi apenas o portal para o autoconhecimento que Fellini conseguira abrir a fim de alcançar, à custa de muito trabalho, experiências malogradas e um processo de refinamento constante, “La Dolce Vita” (1960), “8 1/2” (1963) e “Amarcord” (1974), essas, sim, obras-primas, sendo este último sua obra máxima. Desdobrando-se sobre suas reminiscências na pele de Titta, um menino cheio de imaginação que vive bisbilhotando a vizinhança em tempos do fascismo mais desabrido, perseguições políticas, restrição de liberdade, Il Maestro conseguiu um dos quatro Oscars de Melhor Filme Estrangeiro do currículo, o último, se se tirar da lista o Oscar pelo Conjunto da Obra, em 1993, quando compareceu ao Teatro Dolby, então Kodak, para receber o prêmio, observado pela mulher, Giulietta Masina (1921-1994) — a figura feminina mais importante em quase todos os seus filmes, como em “A Estrada da Vida” —, às lágrimas na primeira fila. Naquele mesmo ano, Fellini partia para outra jornada, logo acompanhado por Masina, que não sabia viver sem o homem cuja história se fundiu, pela vontade de ambos, à dela.
“Amarcord” é superior a “A Estrada da Vida” até do ponto de vista mercadológico, uma vez que o filme de 1954 foi contemplado “apenas” com o Oscar de Melhor Roteiro Original, ainda que seja forçoso admitir que sua popularidade ombreia à do irmão mais novo e mais celebrado nas altas rodas, talvez por ser mais povão mesmo, predicado que a natureza viril e algo maldita de Anthony Quinn (1915-2001) encarna à perfeição. Seu Zampanò, um brutamontes de cuja origem se sabe muito pouco, viaja pela Itália apresentando na rua um espetáculo que sequer pode ser chamado de circense, tamanhas a improvisação e a precariedade, em que o carro-chefe é o número em que quebra uma corrente amarrada ao corpo com a força de seus músculos. Por precisar de uma assistente que o auxilie nos afazeres do dia a dia e, principalmente, passe o chapéu a dada altura do show — mas que também aplaque sua solidão, ainda que a distância —, ele compra Gelsomina, filha mais velha de uma viúva pobre, vendida pela mãe por esta não poder sustentá-la. Gelsomina ajuda Zampanò e também se torna parte das apresentações, como palhaça, à moda de Charlie Chaplin (1889-1977) — para tanto, foi capaz de aprender a tocar trombeta de ouvido, usando o instrumento para fazer soar a melodia pela qual todos passam a reconhecê-la. Sofrendo com os constantes maus-tratos do patrão, a palhacinha triste está sempre tentando ir embora, mas nunca consegue — e ainda leva uma surra como castigo. A vida vai seguindo assim, até que Zampanò e Gelsomina são incorporados ao elenco de um circo, onde também trabalha Bobo, de Richard Basehart (1914-1984). Como não poderia deixar de ser, a convivência dos dois homens não tarda a se pautar por uma rivalidade sem limite, a ponto do personagem de Quinn atacá-lo com tal fúria que termina na cadeia. Bobo se apaixona por Gelsomina, é correspondido, mas, sensível, percebe que há entre Zampanò e a palhacinha uma ligação mais forte do que ele pode suportar, e decide ir-se embora. Uma vez solto, Zampanò lava sua honra investindo contra Bobo de forma ainda mais colérica, o que acaba por afetar os três.
Há alguns apontamentos interessantes a se elaborar aqui. O personagem de Basehart, espírito perigosamente livre, não mede consequências quando enfrenta Zampanò, como se quisesse mesmo terminar da forma que termina, dando fim a uma trajetória de desencontros que já o atormentava. Por seu turno, Gelsomina livra-se de sua aura de inocência e pureza, tendo grande responsabilidade no que se passa com Bobo. Giulietta Masina, uma das grandes intérpretes dramáticas do século 20, quiçá a maior, capta muito bem a leviandade da mulher sofrida, ainda que involuntária, por nunca ter tido na vida a possibilidade de escolher coisa alguma: a vida era o próprio existir, e acabou. Masina soube como poucos em seu ofício equilibrar a porção de angústia com a medida de esperança nesses papéis que vieram a se tornar sua marca registrada, em cada um encontrando, milagrosamente, um meio de não se repetir. Com uma cara como o coração de Jesus, como canta Caetano Veloso, bondosa, mas também dissimulada e mesmo violenta em boa parte quando preciso — nesse particular, Fernanda Montenegro é sua discípula mais aplicada —, Giulietta Masina constrói uma das parcerias mais lindas do cinema com Anthony Quinn, que igualmente entende que Zampanò não passa de um menino grande, tão estúpido e bestializado quanto Gelsomina, mas ainda mais anatematizado, já que virara um criminoso. Como a sequência final mostra, só lhe resta a explicação das ondas do mar para seu tormento, uma das imagens mais poéticas do cinema, repisada por Fellini em outras circunstâncias algumas vezes. Tudo isso coroado pela fotografia em preto-e-branco de Otello Martelli (1902-2000) e Carlo Carlini e, claro, pela música de Nino Rota (1911-1979), que sabendo misturar o repertório do circo e canções pop à melancolia de acordeões, saxofones e trombetas, dá ainda mais brilho ao trabalho de Fellini, de quem se tornara colaborador assíduo.
Gente como Federico Fellini deveria ser proibida de morrer, mas talvez viver para sempre, num mundo de tantos filmes vulgares, descartáveis, bizarros fosse para ele o maior castigo que pudesse receber. Melhor deixar assim, e que vivam para sempre “A Estrada da Vida” e toda a sua obra, legado infinito que se alonga pela História, sendo impossível assistir a um só de seus filmes, e uma única vez, e saindo-se de cada uma delas muito melhor que antes. A estrada de Fellini é uma alameda repleta de árvores frutíferas, que deixam a viagem muito mais prazerosa.
Filme: A Estrada da Vida
Direção: Federico Fellini
Ano: 1954
Gênero: Drama
Nota: 10/10