Rotten Tomatoes, Vulture, New York Times e iMDB, já publicaram suas projeções para as indicações ao Oscar 2022, na categoria de Melhor Filme. A entrega dos prêmios acontecerá na última semana de março. Entre os principais concorrentes à categoria principal, estão: “Belfast”, “Duna”, “Amor, Sublime Amor”, “Casa Gucci”, “Licorice Pizza”, “Spencer”, “The Tragedy of Macbeth”, “Drive My Car”, e “O Beco do Pesadelo”. Além deles, a Netflix emplacou três filmes nas listas de projeção: “A Filha Perdida” (2021), de Maggie Gyllenhaal; “Não Olhe para Cima” (2021), de Adam McKay, e “Tick, Tick… Boom!” (2021), de Lin-Manuel Miranda. O recém-lançado “Ataque dos Cães”, embora seja um dos filmes mais elogiados do ano, deve ficar fora da categoria principal, mas concorrerá, certamente, em direção, roteiro adaptado e atuação.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Todos nós temos nossos mistérios, indecifráveis, por mais que pensemos o contrário. Entretanto, quando a aura de segredo torna-se nossa maior qualidade, é óbvio que há alguma coisa de muito errado. Esse é o mal de Leda Caruso, a professora de literatura comparada vivida por Olivia Colman, perdida, ou melhor, assolada por suas lembranças. Talvez houvesse solução para um de seus muitos sofrimentos, mas ela não parece tão interessada. Escrava da vida que teve e que já não tem há muito, sem nunca se decidir entre se deixar envolver pelos braços frios do passado ou encarar a realidade, por mais dura que seja, mas sempre melhor, por trazer consigo uma esperança de transformação, a protagonista de “A Filha Perdida” é uma mulher tomada pelo desespero. Um desespero que a paralisa.
A adaptação de Maggie Gyllenhaal, de 2021, para o romance homônimo da escritora Elena Ferrante é um debute respeitável da atriz na direção. Publicado em 2006, “A Filha Perdida” narra as desventuras de uma mulher fragmentada, incapaz de lidar com a verdade e suas consequências, ou pelo contrário, tão acostumada a ter de encarar verdades tão contundentes que tem de aumentar a dose um pouco mais a cada dia, a fim de provar a si mesma que está viva. E foi por aí mesmo que Gyllenhaal se embrenhou, sem pejo, como Ferrante, de apontar as contradições de Leda, empenhando-se por tentar encontrar o X do problema da personagem.
Logo no início de “A Filha Perdida”, Ferrante expõe o caráter autodestrutivo de Leda da forma mais pungente que poderia. A personagem de Colman é obstinada em suas obsessões, aferrada a suas guerras interiores e, ao mesmo tempo, vulnerável, instável, fraca. Leda age por impulso, como um animal, só para meio minuto depois estar completamente arrependida, vexada, imitar um sentimento de empatia qualquer do jeito que pode e tornar a meter os pés pelas mãos. A meta de Gyllenhaal no filme é, no mínimo, manter a narrativa nesse fio tênue que aparta a tensão da psicopatia; os indícios pelos quais se orienta, contudo, são meio duvidosos, uma vez que Leda seja levemente inclinada a preferir esta àquela.
Alter ego da própria autora, de quem se sabe pouquíssimo — Elena Ferrante é o pseudônimo hispânico de uma autora napolitana, e pelo visto vai continuar a sê-lo por muito tempo —, Leda tenta usufruir de um breve período de descanso numa cidade litorânea da Grécia, e tudo segue em razoável normalidade: ela dispõe de todo o sossego do mundo para ler seus livros, preparar suas aulas, fazer apontamentos, sem descuidar de também aproveitar a exuberância que a rodeia, tomando banhos de mar e se estirando ao sol. O apartamento que Lyle, o zelador atencioso interpretado pelo veterano Ed Harris, consegue para ela é iluminado, amplo, arejado. Leda consegue suportar as investidas cavalheirescas de Lyle sem maiores sobressaltos, e, o principal, sem escândalos — afinal, ela é uma dama, uma acadêmica, uma alma sensível acima de tudo — e parece que vai viver mesmo dias felizes, ou menos melancólicos. Mas seus planos de tempos de paz fazem água.
A chegada de uma família numerosa (e barulhenta) põe seus nervos à prova, com gente mal-educada, mal-acostumada, espaçosa, grosseira, a atrapalhar sua leitura. Dona de uma capacidade incomum de se adaptar às adversidades de um meio estranho que vai se tornando hostil consoante a trama se desenrola, muito graças a seu temperamento emocional, Leda acaba por elaborar um jogo mental em que se dedica a traçar o perfil de um daqueles tipos exóticos, o que mais a toca, por uma razão especial. Trata-se de Nina, personagem de Dakota Johnson, que brinca com Elena, de Athena Martin, sua filha. Mesmo essa sua diversão aparentemente pouco convidativa lhe é negada: Leda tem um entrevero gratuito com Callie, cunhada de Nina, a matrona ainda fresca de Dagmara Dominczyk, grávida aos 42 anos, uma antítese perfeita de tudo o que se tornara. Como tudo em “A Filha Perdida” é oblíquo, a rusga entre as duas se presta a aproximá-las, malgrado não se tenha muita convicção acerca das reais intenções de uma e outra.
A questão da maternidade, realizada plenamente no caso de Callie, com todas as renúncias que isso implica, e frustrada em maior ou menor proporção quanto a Nina e, por evidente, Leda, vem à tona com um evento que as coloca ainda mais próximas. O pouco que se sabe a respeito emerge graças às caudalosas sequências em analepse, momento em que Olivia Colman cede lugar a igualmente talentosa Jessie Buckley que, justiça se lhe faça, se expõe muito mais que a ganhadora do Oscar de Melhor Atriz pela performance como a rainha Ana da Grã-Bretanha (1665-1714) em “A Favorita” (2018), de Yorgos Lanthimos. Nesses flashbacks, a jovem Leda é mostrada como uma histérica, mas seu drama é real. Vítima da armadilha que preparou para si mesma, a da maternidade precoce e idealizada, Leda tenta se equilibrar entre a carreira como tradutora e ensaísta, que desponta celeremente, e a educação das filhas, Martha e Bianca. Ao perceber que o interesse do professor Hardy, o acadêmico badalado de Peter Sarsgaard, vai muito além de seus rematados conhecimentos na obra do poeta irlandês William Butler Yeats (1865-1939), Leda joga para o alto o casamento já meio arrefecido com Joe, de Jack Farthing, e toma a decisão que impacta sua vida para sempre.
Gyllenhaal se arrisca ao tentar captar todo o estado de completa balbúrdia de uma personagem que não tem todo o interesse que seria necessário para, ao menos, botar o nariz para fora desse pântano — e a Academia tem verdadeira fixação por diretores com esse grau de arrojo, tanto melhor se estreantes. A despeito de levar ou não o homenzinho dourado para casa — e ela merece —, Maggie Gyllenhaal compõe um dos melhores filmes sobre os conflitos da existência, inerentes a qualquer ser humano. Como se vê, 2022 será um ano de insurreições também no cinema.
O fim está próximo e ele vem do alto. Por trás de grandes sucessos do cinema, todos dotados de algum grau de cinismo e descrédito na humanidade, em “Não Olhe para Cima” Adam McKay apresenta a sua versão para o maior medo da humanidade — e grande alívio para alguns —: a iminência da morte.
Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de seu filme suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.
A história tem todos os clichês de um filme-catástrofe, protagonizado por um cometa prestes a reduzir a Terra a escombros numa colisão estimada para dali a seis meses e 14 dias. Esse corpo celeste desgarrado de uma galáxia vizinha fora revelado graças à descoberta de Randall Mindy, astrônomo da Universidade do Michigan, auxiliado por sua assistente, Kate Dibiasky, convocados a dar explicações detalhadas sobre o pode estar por vir — como se precisasse — à Casa Branca. Os personagens de Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence saem em disparada para o encontro com Janie Orlean, a abilolada presidente dos Estados Unidos vivida por Meryl Streep, convictos de que a mandatária maior da República está de fato apavorada e quer fazer alguma coisa a fim de minimizar os estragos, como se fosse possível. O cenário nonsense a que são aprisionados parece mesmo um prenúncio do apocalipse: Orlean leva sete horas para aparecer, absorta que estava nas discussões em torno do nome indicado por ela para a Suprema Corte, que pode acabar rejeitado em função das muitas tramoias, pretéritas e atuais do candidato. Tudo pateticamente similar ao que toma os palcos de um certo país ao sul do continente de tempos em tempos.
A partir de então, o componente de glosa política recrudesce, com uma Casa Branca cada vez mais imersa numa narrativa burlesca, farsesca, mas ao mesmo tempo lastimavelmente verossímil, personificada numa governante obcecada pelas eleições legislativas que não tardam, fundamentais quanto a lhe apontar se sua permanência à frente do Executivo federal será viável ou se terá de pensar em alternativas caso o navio faça água. O cometa pode até ter lá sua relevância, claro, mas seu instinto de sobrevivência fala mais alto. Sobrevivência política, bem entendido. O diretor açula o público ao insinuar que, no fundo, a natureza humana está muito mais para Janie Orlean do que para Randall Mindy, muito mais afetada (e tocada) com os escândalos políticos que com possíveis hecatombes que podem acabar não passando de mero delírio, quiçá a esperança suicida e assassina de um bando de fanáticos, ou melhor, de um fanático e uma fanática, que não têm na vida aspiração qualquer além de, como os romanos no poema do alexandrino Konstantinos Kaváfis (1863-1933), escrito em 1904, esperar pelo fim. O título, “À Espera dos Bárbaros”, não por acaso foi aproveitado pelo escritor sul-africano J.M. Coetzee em seu romance, publicado em 1980, que por seu turno vira filme pelas mãos do diretor colombiano Ciro Guerra, em 2019. O mundo é uma aldeia.
Mindy e Dibiasky são cavaleiros do Apocalipse cônscios de sua função, mas sua tarefa é uma pedreira, dificultada ainda mais por jornalistas que espetacularizam tudo. Em “Não Olhe para Cima”, essas figuras estão muito bem representadas por Jack Bremmer e Brie Evantee, os âncoras que tornam o roteiro ainda mais saborosamente vesano. A essa altura, alguém já pode ter se perdido no universo de criatividade indomável de McKay, repleto de estrelas, palmas para Francine Maisler, a diretora de elenco — ou pode apenas estar hipnotizado pelo penteado de Lawrence, decerto um dos mais feios da história do cinema, outra prova de amor ao seu ofício —, mas o filme tem passagens lapidares. A entrevista que os cientistas concedem aos personagens de Tyler Perry e Cate Blanchett certamente é um dos pontos altos da trama; sutil em toda a sua algazarra, a sequência revigora a tensa discussão sobre limites da imprensa, desprezo à ciência, obscurantismo intelectual, negacionismo. A pantomima circense levada por Bremmer e Evantee gera a histeria de Dibiasky, que grita em cadeia nacional que estão todos condenados, e tem de arcar com todos os muitos ônus de sua coragem impulsiva. A distopia é real.
O trabalho da equipe de computação gráfica, deslumbrante, já no desfecho de “Não Olhe para Cima” acena com certa dose de conforto espiritual num tempo em que políticos demagogos acabam experimentando a fúria de criaturas à primeira vista adoráveis, mas que como eles, sabem esconder suas verdadeiras intenções direitinho. Não é uma solução, mas o cinema existe muito mais para iludir o homem que para alentá-lo. Não olhe para baixo.
Brincando em cima daquilo, falando de musicais e da mágica por trás deles, Lin-Manuel Miranda sugere ao público um jogo metalinguístico cujo terceiro participante é um dos maiores talentos dos espetáculos da Broadway.
A narrativa de “Tick, Tick… Boom!” (2021) vai e volta, ora retratando a vida pessoal de Jonathan Larson (1960-1996), ora se concentrando em seu processo criativo, ainda que seja impossível dissociar uma do outro. Vivido por Andrew Garfield com sua competência usual, a produção de Miranda se presta a uma retrospectiva da curta vida de Larson, entremeando nas sequências que registram a angústia de uma vida meio besta, defendida com a ajuda de um subemprego medíocre e, em muitas situações humilhante — sobretudo quando se reconhece dotado de uma qualidade que os demais não têm —, seus momentos de catarse artística, em que consegue por para fora seus anseios e transforma a opressão da existência em canções. O embate entre Larson e seu espírito atormentado, de um artista desconhecido que ansiava por se fazer notar, por ser valorizado por seu verdadeiro ofício, como se sentisse que para ele o tempo, a exemplo do que acontece um filme de ação ruim ou num desenho animado inconsequente, menos elástico que para os outros, era regido pelo compasso de uma bomba-relógio — daí a referência ludica de Miranda à onomatopeia do título —, é o grande mote de “Tick, Tick… Boom!”, registro dos bastidores silenciosos e torturantes da composição de um musical sobre um musical. Uma espécie de prelúdio de “Rent”, levado à cena em 1994, um dos shows de maior prestígio na Broadway ainda hoje.
Miranda viu “Rent” em 1997, ao celebrar a passagem de seu 17º aniversário. Foi quando entendeu, afinal, que musicais poderiam se estender sobre coisas muito menos grandiosas que os conflitos éticos de uma vedete dividida entre dois amores em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como em “Cabaret” (1972), ou de um nonsense incomodamente transformador, mostrando a cadeia como cenário para duas assassinas dos anos 1920 revelarem suas aspirações, caso de “Chicago” (1975). Musicais também são capazes de dar voz ao homem comum, especialmente àquele que tinha tanto a dizer. Anos depois, já na Universidade Wesleyan, em Connecticut, lhe veio a inspiração para o texto de seu primeiro trabalho no gênero, “In the Heights” (2005), cuja história transcorre num dos tantos bairros da Nova York em que nasceu, em 1980. “In the Heights” foi o vencedor do Tony, o maior prêmio para espetáculos teatrais dos Estados Unidos, em 2008.
Andrew Garfield capta com muita sensibilidade a ideia de finitude, de urgência da vida — que em Larson era ainda mais pulsante —, amalgamando à personalidade forjada pelo sofrimento do compositor uma base de confiança, que por sua vez escondia-lhe a grande ambição que o fazia viver: tornar-se famoso por seu dom e conseguir manter-se a partir dele. A instabilidade emocional de Larson — incapaz de conduzir o namoro com Susan, de Alexandra Shipp, ao passo que também acaba perdendo Michael, papel de Robin de Jesús, o amigo de infância com quem mora — torna-se o gatilho para que ele resolva situações fundamentais em sua carreira incipiente ao mesmo tempo em que perde o controle sobre sua intimidade.
Aludindo a quadras memoráveis da vida de Jonathan Larson, a exemplo do contato (ainda que nada próximo) com Stephen Sondheim, o maior artista vivo do teatro americano, a quem homenageou com “Sunday”, uma menção à “Sunday in the Park with George”, de Sondheim, “Tick, Tick… Boom!” não desaponta nem mesmo quem esperava ver no protagonista a aura de grande autor, mas só encontra o homem imaturo, egocêntrico, perdido em seus devaneios criativos. No mínimo, se percebe que essa é uma história de um sujeito comum, digna de ser contada. Os artistas também sofrem.