Brutal, irônico, maluco e sutilmente trágico, filme escondido na Netflix é um afago na alma

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Vencedor dos prêmios de Melhor Filme de Estreia no Festival de Berlim e Melhor Diretor Estreante no Festival de Tribeca, “Güeros” corresponde às expectativas. Lançado em 2014, o trabalho do espanhol Alonso Ruizpalacios, uma comédia nada previsível, completamente avessa aos protocolos do gênero, remonta à Nouvelle Vague, o movimento de renovação do cinema iniciado na França por François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard nos estertores dos anos 1950, mas adiciona outros elementos a fim de apresentar sua própria visão sobre o que deseja registrar.

Em abril de 1999, Tomás, o adolescente meio marginal vivido por Sebastián Aguirre, vai enterrando a vida em Veracruz, cidade portuária no Golfo do México, sem perspectivas quanto a escapar da delinquência iminente. Uma brincadeira irresponsável com um vizinho quase degringola em tragédia e sua mãe se dá conta de que o garoto é demais para ela, que não é capaz de trabalhar, tratar da casa e pajear um marmanjo. Antes que as coisas atinjam um ponto sem volta, ela resolve despachá-lo para a Cidade do México, onde Tomás deverá se ajeitar na república em que vive Federico, seu irmão mais velho. Entre surpreso e incomodado, o personagem de Tenoch Huerta o recebe, e a partir daí as histórias dos dois passam a compartilhar dos mesmos desdobramentos, um interferindo na forma como o outro entende o mundo.

Ruizpalacios já começa a criítica social em “Güeros” pelo título do filme, uma gíria usada para se depreciar uma pessoa branca. Por seu turno, “sombra”, o apelido de Federico, se refere a indivíduos de pele escura, e esse parece ser o único detalhe a separá-los. Tomás, o güero, não se importa em ter de passar a viver num pardieiro como o apartamento que Sombra divide com o amigo Santos, personagem de Leonardo Ortizgris, que só conta com energia elétrica por um algum tempo durante o dia, graças ao gato que a filha da vizinha de baixo, portadora de síndrome de Down, involuntariamente os ajuda a fazer. À noite, tudo fica à luz de velas, ou mesmo na mais profunda escuridão, e para eles não há o menor problema nisso.

O caos daquele ambiente reflete a balbúrdia social do país naqueles tempos. Sombra e Santos são alunos da UNAM, a Universidade Nacional Autônoma do México, mas passam o dia em casa porque os alunos levam adiante uma paralisação contra o pagamento de uma taxa de matrícula, embora a Universidade nunca tivesse cobrado um níquel de quem quer que seja, decerto uma interferência imperialista dos Estados Unidos na forma como a instituição é conduzida. Totalmente apáticos, sem interesse nem pela greve e tampouco pela volta às aulas, os dois parecem satisfeitos em parasitar o Estado, que lhes paga uma bolsa a que não fazem justiça e, bem ou mal, lhes fornece um teto sobre a cabeça.

O surgimento do irmão na vida de Sombra é o que o compele a sair um pouco da inércia. Tomás, fã ardoroso de Epigmeneo Cruz, um velho astro do rock mexicano num ostracismo de décadas, ouve as canções do ídolo por meio de uma fita cassete que o pai lhe havia dado. Interpretado por Alfonso Charpener, Cruz agoniza num hospital da cidade, e Tomás anseia por ir até lá e lhe prestar suas últimas homenagens, desejo a que o irmão e Santos terminam acatando. Finalmente imbuídos de um propósito qualquer — e fugindo da ira da vizinha espoliada —, o trio dá início a uma viagem labiríntica, repleta de contratempos e surpresas, a bordo do carro velho de Sombra.

Se até esse momento se acompanhou uma narrativa predominantemente leve, despretensiosa, “Güeros” vira a chave e saca seu lado documental, registrando passagens importantes da história recente do México, valendo-se inclusive de gags metalinguísticas. O caráter revolucionário do motim, capitaneado por estudantes que tomaram as instalações da UNAM, visa a deliberar acerca do que aqueles jovens queriam da vida, todos um tanto inebriados pela nuvem de oxigenação política que os cerca. O cenário descamba para uma crise social sem precedentes no país, a maior manifestação coletiva mirando novos rumos para a sociedade desde os piquetes de estudantes da então Universidade de Nanterre, hoje um dos 13 câmpi da Universidade de Paris, em 2 de maio de 1968. Os protestos pela renovação dos costumes, contra o capitalismo e em prol de uma participação maior das mulheres no mercado de trabalho logo rodaram o globo, lançando muita gente em conflitos existenciais, o que é irresistivelmente irônico, uma vez que o existencialismo do casal de filósofos franceses Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) foi o alicerce mais vigoroso do fenômeno. Aos poucos, uma legião de jovens, pobres e ricos, à esquerda e à direita, se percebiam faltos de um lugar no mundo. Perdidos.

Tomar esses acontecimentos, a um primeiro olhar tão distantes no tempo, reforça a escolha de Ruizpalacios quanto a fazer de seu filme um manifesto pelo cinema engajado, em que a política se faz presente na história sem azedar a massa com a defesa de teses dessa ou daquela ordem. Os anos 1960 foram marcados pela ebulição contracultural no mundo todo, mormente em países subdesenvolvidos como o México e o Brasil, sequestrado por uma ditadura militar que lhe abreviou duas décadas de democracia, entre 1964 e 1985. Se nos distraímos por um instante, imaginamos que “Güeros” transcorre nesse momento da história, não em fins dos anos 1990, confusão que elementos cênicos como um computador de mesa e o próprio cassete com as canções do roqueiro aposentado de quem Tomás gosta ajudam a dissipar. Também se depreendem do trabalho do diretor influências como Yasujiro Ozu (1903-1963) e Federico Fellini (1920-1993), afloradas com o desajuste gradual dos personagens de Aguirre, Huerta e Ortizgris, que destrinchados pela belíssima fotografia em preto-e-branco de Damian García, compõem o retrato muito particular do tempo em que vivem. 

Pleno de seus malabarismos retóricos, em que os três protagonistas se lançam sem temores pelo mundo, “Güeros” também sabe falar a sério. O México foi se transformando num grande especialista em cinema bem-feito, colocando na praça tesouros como o filme de Alonso Ruizpalacios, muito semelhante na forma e no conteúdo ao magnifico “Roma” (2018), dirigido por Alfonso Cuarón, donde se pode concluir que a tendência não é só uma nova onda. É um sistema que, felizmente, se estabelece um pouco a cada ano.


Filme: Güeros
Direção: Alonso Ruizpalacios
Ano: 2014
Gênero: Comédia/Aventura/Drama
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.