O filósofo e crítico de arte Roger Scruton (1944-2020) era capaz de reconhecer, por óbvio, a importância das máquinas para o desenvolvimento do homem, mas Scruton também alegava que com elas o mundo perdera muito de sua ingenuidade, sua ternura e sua beleza, daí a arte não poder nunca prescindir da estrita observação de todos os paradigmas canônicos no que concerne ao requinte estético. Nem tudo é arte, mas a arte está em tudo; em todas as coisas, vivas e inanimadas, perenes e transitórias, há um quê de beleza oculto, esperando a astúcia de um gênio sensível para ser descoberto.
Por mais difícil que seja de se acreditar, existe uma beleza infinita no gênero humano. O homem, esse bicho estranho, que se comporta como fera predadora boa parte do tempo, mas completamente só no mundo, se perde em devaneios e sonhos que não pode alcançar, guarda para si o seu melhor, até por instinto, cabendo à arte, à boa arte, mergulhar fundo e resgatar esse tesouro, que mesmo depois de restaurado devido às avarias que o tempo traz, não perde as marcas de um passado melancólico, de dúvidas e aflições.
A ameaça do fim, sempre à espreita, é uma das questões que mais angustiam o homem. Por sabermos que a morte está sempre à ronda, mas sem nunca termos a certeza sobre em que esquina nossa jornada há de cruzar com a da indesejada das gentes, tentamos fazer da vida um tempo glorioso, como se cada segundo fizesse toda a diferença entre ser só mais um ou tornar-se parte do espírito de um tempo, uma figura a partir da qual boa parte dos outros mortais passa a se orientar. Viver como se cada dia fosse mesmo o último, empenhando-se por escapar da subjugação de um destino que não colabora e nos quer todos iguais, todos medíocres, eis a sina da humanidade.
A relação entre a natureza humana e sua extinção, depois de um cenário de catástrofe ou pestes para as quais a ciência ainda não descobriu medicamentos eficazes — cura, então, nem pensar — é matéria-prima de grandes histórias, que o cinema materializa com precisão e apuro estético que poucas manifestações artísticas alcançam. Em 2022 a Bula mantém a tradição de elencar os filmes para os quais você vai ter de dedicar um quinhão do seu tempo, como Um Lugar Silencioso (2018), em que o diretor John Krasinski dá vida a um homem que tenta manter sua família a salvo de monstros inclementes quando tudo o mais resta perdido. Outra sorte de desordem, por seu turno, é o mote de “Neymar: O Caos Perfeito” (2021), série documental em três episódios dirigida por David Charles Rodrigues que esmiúça a carreira e a vida pessoal de um dos maiores jogadores que o futebol já viu, uma trajetória de feitos excepcionais, pontuada também por fracassos, dores e uma boa medida de polêmica. “Um Lugar Silencioso”, “Neymar: O Caos Perfeito” e mais três longas são os destaques da Netflix para 2022, que decerto nos vai exigir o respiro que o cinema proporciona. As produções estão organizadas de acordo com o ano em que foram lançadas pela indústria, sendo que “Neymar: O Caos Perfeito” e mais uma são inéditas.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Georgia, a protagonista vivida por Chloe Grace Moretz, é uma universitária de 19 anos que descobre que está grávida na mesma noite em que uma horda de robôs se conflagra e dá início a uma revolta. Responsáveis pelos trabalhos mecânicos de que o homem foi capaz de se livrar depois de séculos de evolução, os autômatos absorveram o espírito de corpo de que o gênero humano às vezes se reveste e não querem mais fazer essas tarefas, deixando-o claro da pior maneira: matando seus patrões de carne e osso e obrigando quem consegue sobreviver a fugir para o deserto. Georgia mantém com o namorado, Sam, de Algee Smith, um relacionamento fugaz em que o amor importa pouco, ainda mais estremecido por causa do bebê que não tarda, mas agora esses dois inconsequentes terão de se suportar se quiserem continuar vivos, enquanto a futura mãe pensa em como será ter um filho nas circunstâncias em que se encontra.
Disposto ao longo de três episódios, com duração entre 50 a 60 minutos, a série documental dirigida por David Charles Rodrigues canta as glórias de um dos maiores jogadores da história do futebol, sem se esquecer, claro, de seu lado menos nobre. “Neymar: O Caos Perfeito” relembra a trajetória de Neymar da Silva Santos Júnior, desde sua ascensão, no Santos, passando pelo auge da fama no Barcelona e desembocando em polêmicas ainda hoje atravessadas na goela do torcedor, como sua atuação na Copa de 2014, quando a Seleção Brasileira perdeu para a Alemanha por 7 a 1, e seu ocaso eminente, no Paris Saint Germain. A produção acompanha a campanha de marketing por trás da carreira de Neymar, verdadeira operação de guerra comandada por Neymar da Silva Santos, o Neymar Pai, e conta com depoimentos de personalidades do futebol a exemplo de David Beckham, Lionel Messi, Kylian Mbappé, Daniel Alves e Thiago Silva, além do surfista Gabriel Medina e do levantador Bruninho, da Seleção Brasileira Masculina de Vôlei, que fazem suas análises sobre a importância de Neymar no esporte bretão mais brasileiro do planeta.
Em sua estreia como diretor, Laurent Lafitte tece loas ao teatro com a adaptação de “L’Origine du Monde”, peça de Sébastien Thiéry. Lafitte também integra o elenco de “A Origem do Mundo”, juntando-se a outras celebridades francesas, como Karine Viard, Vincent Macaigne, Hélène Vincent e Nicole Garcia, explorando as origens sociais e os segredos de família de seus personagens em um drama que sabe dosar muito bem comicidade e reflexão. O filme narra a história de Jean-Louis Bordier, que sente que seu coração não bate mais — e isso não é nenhuma figura de linguagem. Não há sinal de morte na esquina, mas isso é só uma questão de tempo: o protagonista, interpretado por Lafitte, se esforça por resolver um problema do qual nem se lembrava mais, sozinho, mas seu melhor amigo, o veterinário Michel, e sua mulher, Valérie, se compadecem de sua agonia e tentam achar uma justificativa para o fenômeno. Valérie supõe que seja o caso de recorrer a outras dimensões a fim de encontrar uma saída, e é aí que entra Margaux. A guru espiritual, chegada a lidar com o que não se deixa ver, vislumbra uma solução, ainda que de tão inusitada, a ideia possa morrer no ovo. Jean-Louis preservaria a honra, mas perderia a vida.
O roteiro de “Um Lugar Silencioso”, escrito pelo próprio diretor, John Krasinski, em parceria com Bryan Woods e Scott Beck, se baseia numa família, em que Krasinski dá vida a Lee Abbott, o pai, uma figura marginal na trama. Junto com a mulher, Evelyn, interpretada por Emily Blunt, e os três filhos, Marcus, personagem de Noah Jupe, Regan, vivida por Millicent Simmonds, e o mais novo, de Cade Woodward, Lee tenta sobreviver no que restou do mundo depois da invasão de criaturas extremamente violentas que deram cabo de boa parte da população da Terra, tendo de também adotar um hábito essencial para tanto: fazer o máximo de silêncio de que forem capazes, uma vez que esses predadores vorazes são dotados de uma audição muito superior à humana, o que lhes permite chegar ao local exato em que se escondem suas presas ao menor ruído que façam. Regan é a única que passa pela experiência sem maiores dificuldades, por ser surda — e sempre que a personagem surge em cena, o enredo adquire as cores de realidade fantástica de que uma produção dessa natureza tanto necessita, graças ao desempenho irretocável de Simmonds, surda na vida real.
Ao contrário de outras produções que se estendem sobre cenários apocalípticos, em “A Epidemia” ninguém quer acompanhar o fim do mundo pelos meios de comunicação. O diretor Breck Eisner só faz menção à imprensa depois que já subiram os créditos. A pequena Ogden Marsh, perdida em algum lugar no estado americano de Iowa, permanece encerrada em seu atraso, isolada do mundo, e talvez estivesse até congelada no tempo, não fossem elementos pontuais que surgem ao longo da narrativa, como uma criança jogando um videogame moderno. Apesar de ter resistido a ser aprisionada pelo passado, os habitantes da cidadezinha aferram-se a seus velhos costumes, ainda que, subitamente, se vejam forçados a encarar uma realidade para a qual não estavam preparados, viver sob a perspectiva do fim próximo, sem saber se haverá alguma possibilidade de redenção.