A vida era cheia de placas motivacionais, de biscoitos da sorte e de palavras de ordem pichadas nos muros. Descobri mais uma enquanto tomava um café forte que a barista maranhense coava nas próprias mesas dos clientes, em minúsculos coadores de feltro, um verdadeiro mimo. Atendimentos carinhosos andavam escassos. A moça comentou que o café era tão quente quanto as mulheres do Maranhão. Rimos desbragadamente. Não era toda hora que se cruzava por uma pessoa espirituosa. Tomei o comentário como uma espécie de estratégia de marketing para melhorar a qualidade das vendas. Um charme. A vida era um charme; a morte, nem tanto.
Ter um gato ou uma arma em casa? Eu não estava nem aí para dilemas como aquele. Eu brigava, mas, era por amor. Apegava-me aos detalhes. Uma faxineira que arrastava as sandálias ladeira acima, sem perder a fé, sem soltar as tiras. O seu caminhar em câmera lenta parecia tão pesado quanto um telefone atendido no meio da madrugada. É terrível ser acordado por uma chamada urgente. As varizes das suas panturrilhas — canudos calibrosos e violáceos preenchidos por sangue e injúria — lembravam o mapa da bacia hidrográfica brasileira. E como havia rios naquele país. E como havia pobres arrastando Havaianas. Mais uma negra limpa e asseada, com os sovacos lisos, cheirando a Leite de Rosas, disposta a dar um trato no domicílio de uma família de brancos. Os negros também tinham empregadas domésticas?
Um quero-quero implicou comigo, arvorado na peculiar agressividade da espécie. “Não quero nada daquilo que você quer, avezinha arrelienta”. Andava meio desligado, como um mutante. Na calçada, operários reclamavam dos preços de tudo pela hora da morte, enquanto se empanturravam com lanches baratos, repletos de glúten, lactose, gordura trans e um alto teor calórico de fome e de simplicidade. Era preciso manter a sustança para carregar sacos de cimento sobre os ombros. Operários eram homens fortes feito cavalos. Trabalhavam feito cavalos. Comiam e amavam feito cavalos. Cansavam-se, adoeciam e morriam feito cavalos.
Como já disse, apegava-me aos detalhes, triste e abilolado por causa das noites mal dormidas dentro de uma enfermaria. Os combustíveis tinham os preços de um rim. Sentia uma vontade mortal e impertinente de urinar. Devia ser coisa da idade. Ou do clima. Fazia muito frio no planalto central. Urinava-se mais sob baixas temperaturas. Sinal vermelho no semáforo. Uma venezuelana pedia esmolas com um bebê de poucos dias enroscado ao seu colo. Estávamos mais miseráveis do que o habitual para aquela época do ano. No carro ao lado, uma jovem muito bonita maquiava-se em direção ao trabalho. O seu batom era vermelho como o sinal de “Pare”. Parei de pensar que seríamos felizes para sempre se ela olhasse para o lado. Chupei um drops com sabor artificial de hortelã. A manhã parecia um teatro com várias cenas estranhas acontecendo numa sequência tradicional, conquanto, ilógica.
A vida fluía na superfície dos dias, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separasse. O cotidiano já não casava em quase nada comigo. Era difícil estacionar nas imediações de um hospital. Tive que andar por cinco quadras. E observar outros detalhes, e pensar neles de uma forma mais humana. Peguei um elevador repleto de seres silenciosos e cabisbaixos. Capacidade máxima permitida para a amargura. Ninguém se metia com a dor do outro. Defronte ao portal da UTI, as regras eram claras: “Silêncio, por favor”, “Deus no comando” e “Permitido somente um acompanhante”. Nunca me senti tão sozinho. Eu, o meu velho em luta homérica contra a morte e uma infinidade de aparelhos apitando e piscando como se possuíssem vida própria.