O ensaísta espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) dissera que a vida é esquecimento. Federico Fellini (1920-1993) discorda — mas concorda também. A infância, território mágico para onde se transporta o homem sempre que necessita de alento frente à dureza da existência, exatamente por sua natureza fantástica, nunca suscita-nos memórias de como a vida fora em verdade. Escolhemos do que queremos nos lembrar, que passagens menos felizes preferimos varrer para debaixo do tapete, que circunstâncias merecem ocupar em nós um quinhão de nossas vivências. As brincadeiras, o que conversávamos com os colegas da sala, com os companheiros da rua — assuntos completamente díspares, que se diga —, o cheiro do bolo do lanche da tarde preparado pela avó devotada ou as broncas de uma professora um pouco mais caxias, tudo o que vivemos ao longo de nossos anos mais verdes se nos desvela de uma forma eivada de fantasia em que nada é tão crível, nada é tão digno de crédito. O mundo se nos apresenta como o cenário de um filme um tanto comprido além da conta, cujo roteiro termina por nos vencer e nos fazer sonhar.
Em Amarcord (1973), Fellini deixa claro que é esse seu propósito, sonhar — e fazer o espectador sonhar com ele. As lembranças dos tempos de menino, as aventuras (e desventuras) à beira de uma adolescência que se avizinhava, tudo no filme rescende a uma espécie de vida paralela, em que realidade e fantasia se amalgamam sem cerimônia, estabelecendo-se um contraste interessante com “Roma” (1972), trabalho lançado um ano antes, em que, por meio de um fio narrativo muito mais rígido, expunha suas desditas de homem feito. “Amarcord”, ao contrário, vem e vai no tempo, flutuando ao sabor das conveniências, ora se fixando no que tem toda a natureza fática da vida, ora no que se presta à mera (e sublime) especulação onírica, de como as coisas poder-se-iam ter dado, seguindo a lógica do raciocínio trôpego das crianças. Umas sequências são muito mais longas que outras, pródigas de minúcias que sugerem uma possível veracidade; em outros trechos, há a clara alusão ao devaneio, ao delírio mesmo, tomando por esteio uma ótica de surrealismo. Fellini traça para os pais e os demais parentes de Titta, o protagonista da história, a linha da caricatura, bem como acontece com os professores, seres bizarros, dotados de uma aura mítica, celestial e demoníaca, cômica e monstruosa. Os acontecimentos políticos e sociais são tomados à luz de genuínos enigmas: nada do que vai ali tem a menor relevância, a não ser por seu aspecto grandiloquente de festa, de solenidade cívica, edulcorado pela presença da fanfarra, dos desfiles imponentes, dos homens em uniformes respeitáveis, dos discursos em tom pomposo.
Em “Amarcord”, inversamente ao que se observa em outras obras de Fellini, a exemplo de “Satyricon” (1969) e do já mencionado “Roma”, a história se concentra em personagens muito específicos, do mesmo modo que o eixo da história se fixa em uma única direção. As citações são todas reminiscências de família, incorporadas em figuras muito pitorescas e muito definidas. O tema do exercício da sexualidade por Titta, alterego do diretor, é explorado do ponto de vista de um rapazote que se encanta por Gradisca, a mulher mais sensual de Rimini, que junto às consortes de vida desditosa, povoam as suas quimeras masculinas ao flanarem vestidas de encarnado pelas vielas do lugarejo. A família do personagem central se pauta por todos os clichês: é uma legítima família italiana, numerosa, ruidosa, sentimental, piegas até.
A partir do plano-sequência inicial, extenso, denso, oscilando entre registros do dia e da noite, aquela fase específica da vida de Titta vai se aclarando ao público, e ao passo que a narrativa toma corpo, Fellini opta por priorizar as tomadas noturnas, a fim de, justamente, enfatizar o caráter de indefinição do que está sendo contado. A fotografia torna-se mais e mais voltada ao negro e ao sépia, com cenas tão aceleradas que sugam o espectador. Quanto mais se esgarça a puerícia de Titta, menos presentes são as cores. A abordagem dos conflitos adquire uma natureza muito mais circunspecta e a névoa de poesia se vai dissipando, ainda que sempre reste um fumo de beleza, mesmo quando o garoto compreende que chegou a hora de dar adeus à inocência.
Em “Amarcord”, a meninice de um artista consagrado, tendo uma paragem indizível como o vilarejo de Rimini do começo dos anos 1930 à guisa de palco, é que é a protagonista. Os horrores do fascismo de Benito Mussolini (1883-1945) pontuam o roteiro, aludindo com ainda mais força à brutalidade da política, em qualquer tempo, mas de maneira que o relato não perca a graça. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1973, “Amarcord” ainda é o trabalho mais lírico de Fellini, harmonizando à perfeição a fotografia de Giuseppe Rottuno, os figurinos e os cenários extravagantes de Danilo Donati e a trilha sonora nostálgica de Nino Rota. Uma recordação de como a vida era doce.