No ano de 2022, começam as celebrações do centenário do Modernismo, tanto no Brasil como em nível mundial. Faz cem anos que saíram as primeiras obras monstruosas de ficção modernista. Elas eram meditações sobre o tempo. O irlandês James Joyce publicou o romance “Ulysses” em 1922, o mesmo ano em que morre o francês Marcel Proust, autor de “Em Busca do Tempo Perdido” (1913-1927). Em 1924, o alemão Thomas Mann lançou “A Montanha Mágica”. E no ano seguinte, foi publicado “Mrs Dalloway”, da inglesa Virginia Woolf. Nada mais foi como antes.
Até o século 19, os escritores estavam mais interessados em observar as coisas visíveis do mundo, o lado exterior. A partir da psicanálise de Freud e do horror da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), algo havia mudado na percepção subjetiva do mundo. As pessoas não eram mais as mesmas e tinham vivido as mais traumáticas experiências nos campos de batalha da Europa. A Rússia tentava a nova via da revolução social. E as artes perceberam as mudanças e passaram a se aventurar pela miudeza interna dos personagens. Uma das transformações mais fortes foi a aceleração do tempo.
Paul Ricouer apontou as convergências das obras de Woolf, Mann e Proust em torno da questão temporal. Segundo ele, as obras desses autores modernos “são fábulas sobre o tempo, na medida em que é a própria experiência do tempo que constitui o cerne das transformações estruturais”. O mundo passava a ser mais urbano, sobretudo na Europa, sendo a vida das pessoas regida pelos ponteiros do relógio. Tornou-se possível condensar uma narrativa ficcional em apenas 24 horas (Joyce, Mann), notar a dilatação temporal (Mann) e sugerir a implosão de diferenças entre presente e passado (Proust).
Homem comum: James Joyce
A experiência radical sobre o tempo completa cem anos em 2022, o que promete um interesse renovado pela obra do autor. No último século, o dia 16 de junho se tornou data de celebração irlandesa, batizada de Bloomsday e até mundial por conta de um livro. Leitores e estudiosos se reúnem para conversar sobre o romance “Ulysses” (1922), que se passa unicamente nesse dia. A narrativa tenta condensar o que é possível acontecer na cabeça de alguém, uma figura extremamente ordinária, comum, em 24 horas de andanças pela cidade de Dublin, capital da Irlanda.
Joyce construiu “Ulysses” em torno dos personagens Leopold Bloom e Stephen Dedalus (que havia aparecido no romance anterior “Retrato do Artista Quando Jovem”). A história transcorre em 16 de junho de 1904, quando dizem os biógrafos o autor conheceu a esposa Nora Barnacle. Poderia ser uma narrativa realista. Mas uma das inovações Joyce foi usar a estrutura da “Odisseia”, de Homero, para construir 18 capítulos. Cada um deles é narrado de uma forma diferente, tem uma cor, arte e órgão humano correspondentes. Um épico para tempos que não reconhecem mais deuses e heróis.
Além de paródia homérica, Joyce desenvolveu a técnica do “monólogo interior” dos personagens. A escrita capta o “fluxo da consciência”. Podemos imaginar o que seria transcrever todos os nossos pensamentos ao longo de um dia. Os personagens têm corpos com fome, vão ao banheiro e sentem desejos sexuais incontroláveis. Com tanta informação, o livro ganhou a fama de difícil leitura. Na verdade, é uma história engraçadíssima porque traz o que jamais será dito até para o nosso terapeuta.
O ponto alto do romance é o final quando Bloom volta para casa, já na madrugada. O capítulo final traz a personagem Molly, a esposa de Leopold que ele acredita ser infiel. Ela começa a repassar sua vida e se masturba até chegar ao orgasmo. O leitor mergulha nas profundezas do que pode ser o pensamento de uma mulher num momento destes. Para facilitar o entendimento dessa história, há duas adaptações para cinema: “A Alucinação de Ulysses” (1967), de Joseph Strick, e “Bloom” (2004), de Sam Walsh. Este último capta bem o humor e os delírios da história.
Um dia na vida: Virginia Woolf
A inglesa Virginia Woolf também percebeu que nada seria como antes, após a Grande Guerra, da qual os soldados voltavam mais pobres de histórias para contar e com pensamentos estranhos. Em 1925, publicou o romance “Mrs Dalloway”, focando apenas um dia da personagem Clarissa Dalloway na Londres de junho de 1923. Ela criou as vidas paralelas de Clarissa (que prepara um jantar grande em sua casa para aquela noite) e de Septimus Warren Smith, o veterano de guerra. O narrador do livro faz um passeio pelo centro da capital inglesa, tendo essas duas almas como foco.
O mundo europeu havia mudado no pós-Guerra. Um avião corta o céu de Londres, o ritmo das pessoas está mais acelerado. Como nota Ricouer, há um confronto entre as lógicas do tempo de vida (representado pelas badaladas constantes do Big Bem) e do “tempo mortal da alma” dos personagens. A memória dos campos de batalha é algo perturbador, levando a um dos pontos altos do romance. Clarissa e Septimus jamais se encontram, porém ele vira notícia naquele dia e abala profundamente a vida da senhora da sociedade que fica sabendo da história daquela alma degradada pela guerra.
Virginia Woolf aprofundou essa questão do tempo em 1927, com a publicação do romance “Ao Farol”. É impressionante como ela consegue contar histórias mínimas, como a da família Ramsey que reúne os amigos para uns dias de descanso na praia em 1909. Sem cerimônia ou aviso prévio, porém, a escritora dá um salto de dez anos na história dos Ramsey, deixando o leitor perplexo na segunda parte do livro. O mundo já está no pós-guerra, em ruínas que são representadas pela condição precária da casa dessa família. É o livro mais autobiográfico da autora, segundo os especialistas.
Em 1998, Michael Cunningham teve a ideia de atualizar a história de Clarissa Dalloway, ao escrever o livro “As Horas”. A narrativa intercala a personagem woolfiana nos dias de hoje (final do século 20), as histórias dos tormentos da própria Virginia (incluindo seu suicídio) e mais uma história fictícia que amarra toda a trama. Esse livro virou o belíssimo filme “As Horas”, em 2002, de Stephen Daldry, com o atriz Nicole Kidman no papel da escritora e uma trilha sonora do genial Philip Glass. A figura contida de Clarissa foi magistralmente feita por Meryl Streep.
Tempos sombrios: Thomas Mann
Uma terceira fabulação sobre o tempo saiu das mãos do escritor alemão. Também o cenário europeu do período entreguerra dita o ritmo da história. Na juventude, Thomas Mann se considerava um apolítico. Nada da agitação que atraía o irmão mais velho, Heinrich. Mas, quando percebeu o que se passava na sua Alemanha a partir de 1933, colocou a boca no trombone para o mundo. Já exilado nos Estados Unidos e com o Prêmio Nobel de Literatura de 1929 na estante, ele chamava a atenção de todos. É o escritor que sempre deve ser lido em tempos sombrios.
No começo da carreira, escreveu a novela “A Morte em Veneza” (1912), sobre uma epidemia de cólera na cidade italiana. O personagem Gustav Aschenbach está de veraneio no local e resiste a sair dali por conta da atração pelo jovem Tadzio. A paixão homoafetiva e a peste o desnorteiam. Mas a verdadeira peste apareceu no romance “A Montanha Mágica” (1924). Está ali o ovo da serpente que destruiria a Europa na época. Mann criou um “teatro” histórico e político num sanatório suíço para tuberculosos.
O personagem Hans Castorp (segundo autor, um “jovem singelo”) vai visitar um primo e acaba internado por sete anos naquele local. Nas alturas, os seres humanos perdem a noção do tempo que parece correr mais devagar. O drama central é a disputa pela alma de Castorp. De um lado, está o espírito sombrio do jesuíta, tradicionalista e incendiário Naphta. Do outro, aparece o humanismo do personagem Settembrini. Trata-se de uma encenação da grande disputa europeia que explodiria na Segunda Guerra Mundial. É um romance imenso para meditar sobre o tempo.
A vida e a obra de Thomas Mann cabem apenas num livro de ficção — não sendo matéria para uma mera biografia. Foi essa a ideia do escritor brasileiro João Silvério Trevisan ao escrever o romance “Ana em Veneza” (1994). A obra recria a trajetória da mãe brasileira de Thomas (Julia da Silva Bruhns), que nasceu em Paraty (RJ) e teria tido a companhia da negra Ana ao se mudar para a Alemanha. É uma porta de entrada para o universo desse autor central da literatura do século 20. Para quem gosta de cinema, há uma versão de “A Montanha Mágica”, feita por Hans W. Geißendörfer em 1982.
Escritor de catedrais: Marcel Proust
A fábula mais radical sobre o tempo está, sem dúvida, na obra gigantesca do escritor francês. Ele não viu em vida a publicação dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”. O primeiro livro foi enviado para a editora Gallimard em 1913. Conta-se que ninguém fez o favor de sequer abrir o pacote com os papeis. Anos depois, o editor e escritor André Gide disse que a recusa do livro era “um dos piores remorsos de minha vida”. Restou a Proust bancar, naquele ano, a primeira edição de “No Caminho de Swann” (1,2 mil exemplares) com o próprio bolso.
Com a chegada da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), a situação piorou para o romancista. Ele se trancou num quarto recoberto de cortiça e colocava tampões de cera no ouvido. Nada poderia tirar sua atenção. Lá foi preenchendo inúmeros cadernos e os seis volumes restantes de sua “catedral”. Proust tinha obsessão por catedrais góticas, como os detalhes invisíveis nelas ao olho humano. Foi o que ele buscou fazer nas 3 mil páginas finais de “Em Busca do Tempo Perdido”. Uma “catedral” da psicologia da aristocracia francesa, incluindo sua relação com trabalhadores braçais que serviam nos salões e mansões.
Vale a pena atravessar as 3 mil páginas? Os sete livros mergulham no inconsciente de uma época de crise profunda da Europa e de aceleração do tempo. Proust cria a escrita de uma memória “involuntária” e “simultânea”: um pequeno detalhe faz um personagem lembrar de milhões de coisas ao mesmo tempo. Também é um mergulho em dois “vícios” para a França do período: o fato de um homem desejar outros homens e a herança judaica (o ramo familiar da mãe de Proust). Não por acaso o autor ainda é uma das melhores fontes para entender as origens do antissemitismo na 2ª Guerra Mundial.
Proust viu apenas a publicação de três dos sete volumes. Infelizmente não saboreou o reconhecimento mundial. No Brasil, sua obra foi traduzida nos anos 1940 por uma equipe composta, nada menos, por Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana e Manuel Bandeira. Todos à altura do grande escritor. O que é impossível de estar à altura são as adaptações para o cinema. Há duas tentativas feitas por diretores de altíssimo nível: “O Tempo Reencontrado” (1999), de Raoul Rúiz, e “Um Amor de Swann” (1985), de Volker Schlöndorff. Mas a escrita de Proust é intraduzível para além da leitura.