O filme mais surreal que você vai ver (ainda) em 2021 na Netflix

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Ligeiramente inspirado numa história real, “The Girl in the Yellow Jumper” vai direto ao ponto. Ou melhor, nem tão direto assim; lançado em 2020, o filme do ugandense Loukman Ali parece mais um sonho, um mundo de fantasia ávido por se encaixar no mundo real, retrato do próprio país do diretor e da África, por extensão.

Uma das produções mais justamente badaladas do Festival de Cinema da Semana de Nollywood, a Hollywood da Nigéria, em 2020, “The Girl in the Yellow Jumper” ousa contar uma história “comum”, sem necessariamente se desdobrar pelas belezas ou pelas misérias de Uganda. Os pássaros raros e as cataratas Murchinson não foram capazes de seduzir Ali, bem como a pobreza severa de um país cuja maioria da população tem de viver com pouco mais de um dólar diário e enfrenta surtos de cólera recorrentes não o comovem mais. Prestes a completar sessenta anos como nação independente, em 9 de outubro de 2022, há quem sinta falta de Idi Amin Dada (1925-2003), como há viúvas de déspotas, de esquerda e de direita, em todo lugar do globo. Valendo-se do amplo conhecimento diplomático adquirido ao longo da carreira de pugilista amador, Dada maneja um golpe de estado com rara astúcia, e a partir de 1971 até a década seguinte, dá azo a seus delírios aristocráticos — e autocráticos, por óbvio. Um dos episódios mais emblemáticos de sua truculência foi a expulsão de hindus e ugandenses que descendiam de indianos, retratado de forma didática em “O Último Rei da Escócia” (2006), de Kevin Macdonald, além da tortura e morte de aproximadamente 300 000 ugandeses. Personificado pelo talento de Forest Whitaker, vencedor do Oscar de Melhor Ator pelo papel, Idi Amin Dada foi o penúltimo rei de Uganda. Depois dele, em 27 de julho de 1985, veio a junta militar do brigadeiro Bazilio Olara Okello e o general-de-exército Tito Okello. Loukman Ali nasceria cinco anos depois, ainda em meio às idas e vindas da política de seu país.

Talvez fique na alma de todos os indivíduos um resquício da agonia dos que tombaram pela liberdade da pátria em que se nasce. Esse pode ser o caso do diretor, ainda que, frise-se, “The Girl in the Yellow Jumper” não tem nada de engajado, e nem deveria — sequer numa das iscas falsas sobre a qual seu roteiro se desenrola a dada altura. Assumidamente enigmático, o filme abre com um homem adormecido diante da televisão, certamente ajudado pelo tédio de “Criminosos Desmascarados”, em que o âncora, Walusimbi Josh, narra os casos de duas famílias cujos membros foram mortos barbaramente. À primeira vista sem relação entre si, a polícia descobre que há, sim, um elo entre os dois crimes: aquelas pessoas foram assassinadas pelo mesmo homicida, que deixa uma bituca de cigarro sobre um dos cadáveres. Antes de mostrar o neurocientista Mahmoud Sali, interpretado por Philip Luswata, se alongar narrando a surrada fábula do sapo e do escorpião, a câmera de Ali desliza lentamente diante de uma estante em que se veem títulos como “Tubarão”, “Duro de Matar”, “Fargo”, “Aliens”, “Pulp Fiction”. Uma composição ligeira, mas eficaz — e genial — do personagem a ser apresentado a seguir.

O homem que dorme é o cartunista Jim, vivido por Michael Wawuyo Jr. Por trás dele se posta a garota de moletom amarelo do título, que consoante se vai ver depois, é Dorothy. A personagem de Rehema Nanfuka lhe aplica uma injeção com um sedativo poderoso e a cena, antes sombria, destacando a luz da televisão, e, claro, o amarelo do casaco, corta para a paisagem ampla de uma savana cortada por uma rodovia. Como por encanto, Jim surge caminhando pela estrada, sozinho, carregando uma bolsa e trajando um moletom amarelo, momento em que Patrick, um policial de folga interpretado por Maurice Kirya para e lhe dá uma carona. Ao entrar no carro, depois de ser submetido a uma revista a distância, o personagem de Wawuyo Jr. dá de cara com um homem mais velho, que talvez lhe pareça familiar — uma brincadeira do roteiro, como lançar mão de Morocco Omari, produtor-executivo do filme junto com Loukman Ali, em passagens que explicam elementos da cultura de Uganda —, algemado. O mistério só faz aumentar.

Entretanto, à medida que a história toma corpo, vão se esclarecendo alguns segredos da trama — e outros tantos restam irresolutos. Algumas coisas que Patrick dissera são verdadeiras, outras tantas não; algumas revelações feitas por Jim são apenas delírio, e o que não diz põe a descoberto sua covardia. Dorothy, por seu turno, também dispõe de sua parte de vilania, indesculpável, mas talvez compreensível, por tudo o que Jim lhe fizera. O ciclo se fecha da pior maneira possível, e o grande antagonista de “The Girl in the Yellow Jumper”, mais à vista do que até mesmo o espectador mais astuto pudesse supor, sai ileso. E pronto para outra.

A performance de Michael Wawuyo Sr., o homem no banco de trás do carro de Patrick, é a cereja do bolo num filme cheio dos tantos sabores marcantes da África. Há vezes em que as grandes vítimas, os mais injustiçados, se cansam, e o caos que pode degenerar quando todos eles decidirem se rebelar talvez não tenha volta. Uma metáfora não da África, mas da própria humanidade.