O frenesi do século 21 tem fomentado duas correntes, a das pessoas que creem em tudo e das que não creem em nada. O obscurantismo de nossos tempos, o negacionismo, a falta de esperança em tempos melhores, mesmo por caminhos comprovadamente eficazes, como a educação e a cultura, são o melhor fertilizante para que floresçam cada vez mais vicejantes a ignorância e o desespero, este aplacado em grande medida pelo carisma de falsos profetas.
As artes da feitiçaria são um terreno pantanoso, sobre o qual se deve caminhar com muita cautela. E é esse o procedimento de Christopher Alender em “The Old Ways”, um filme em que de fato todos os detalhes importam, inclusive os menos importantes. O roteiro de Marcos Gabriel se desdobra sobre as antigas práticas de encantamentos e exorcismo dos seres do mal que se escondem nos recônditos ocultos do homem, a que o título faz referência. No caso do longa de Alender, lançado em outubro de 2020, no auge da pandemia de covid-19, esses espíritos malignos se possam da alma de Cristina, a jornalista xereta vivida por Brigitte Kali Canales. Nascida em Veracruz, cidade portuária no Golfo do México, mas mandada aos Estados Unidos ainda menina, Cristina volta à terra de seus ancestrais a fim de fazer uma reportagem sobre cultura tribal e, mesmo orientada a manter distância de La Boca, se enfurna na caverna na primeira oportunidade. Esse lugar misterioso (e sinistro) abriga Postehki, “o deus das coisas quebradas”, uma entidade que se apossa da alma de quem invade sua morada sem convite. As vítimas prediletas dessa manifestação sobrenatural são os deprimidos, os fragmentados por dentro, caso da personagem de Canales, viciada em heroína desde garota, dependência explicável em grande parte por causa do que presenciara em criança quando alguém que amava morre justamente em decorrência de um ritual de esconjuro de demônios malsucedido. A necessidade de ter de administrar os efeitos de uma lembrança tão nefasta seriam uma justificativa para, antes de mais nada, a inclinação da protagonista para desrespeitar ordens, postura que não raro termina por arrastá-la para situações de risco.
Decerto a drogadição de Cristina é o principal gatilho a desencadear a possessão, ou a ilusão de estar possuída. Compondo uma parábola sagaz acerca das consequências do abuso de entorpecentes no organismo humano, Alender escolhe o tema da incorporação demoníaca para falar da vulnerabilidade do homem frente às tantas seduções do mal. Sem dúvida uma ameaça real à estabilidade psíquica, episódios em que forças ocultas tomam o íntimo de alguém e ditam suas vontades são raros, o que se subentende em “The Old Ways” à medida que a história se firma. A versão que predomina em Veracruz — ou melhor, a versão exclusiva — é que qualquer um que se dirija a La Boca sem ser chamado é automaticamente veículo de maldições atávicas, que só Luz, a bruxa interpretada por Julia Vera, pode reverter. Auxiliada pelo filho, Javi, de Sal Lopez, Luz mantém Cristina em cativeiro até que a nigromante decida quando a jornalista estará preparada para voltar à vida. E não adianta espernear: como deixa escapar Miranda, a prima da protagonista vivida por Andrea Cortes, Luz e Javi são a autoridade por aquelas bandas.
Como a arte se presta à conjectura, à fantasia, à imaginação de como seria a vida em outros formatos, “The Old Ways” tem a estatura de uma obra-prima sobre a temática da espiritualidade e dos descaminhos do gênero humano, abertos pelo próprio homem, tendo ainda outro às na manga: mostrar as configurações do terror do futuro, mais filosófico, mais reflexivo, sem prejuízo para as fabricas de sangue cenográfico (lamentavelmente). Valendo-se de ritmo próprio e atenção redobrada a aspectos técnicos, é um deleite assistir ao trabalho de Alender. Na estrada há mais de vinte anos, quando despontou com “Memorial Day” (1999), já em parceria com Gabriel, também sobre uma personagem feminina que tem de enfrentar seus fantasmas, o diretor apresenta um filme emocionante, que cresce além do esperado graças ao apuro das escolhas estéticas do cineasta. O espectador é tragado ao coração do México profundo por meio da trilha, saborosa, e da fotografia, que de tão bem-feita tem o condão de provocar certo sufocamento, dado o tom exato de escuro na cabana de alguém chamado Luz, amenizado pelo verde cintilante da selva fechada, cuja umidade é quase palpável. As atuações são um capítulo à parte; Canales, em total domínio de cena, usa de suas expressões corporais vívidas e da forma como diz o texto para deixar claro que Cristina há muito se tornara uma gringa, uma forasteira, completamente anglicizada, a tal ponto que nem fala mais o espanhol. Nesse particular, é largamente ajudada por Sal Lopez e Julia Vera, que embarcaram na proposta com ela. A intérprete da bruxa, aliás, é mais uma surpresa insólita em “The Old Ways”; Julia Vera incorpora à perfeição a feiticeira bestializada e medonha, escondendo por trás da maquiagem pesada o quinhão de meiguice que há em Luz. O resultado é um tipo ainda mais exasperante do que os assassinos em série que pululam no cinema desde sempre — e muito mais carismático, a depender do concorrente.
Empregando recursos narrativos potentes e fazendo as escolhas certas, Christopher Alender desperta o interesse por “The Old Ways”, malgrado o ceticismo de certos críticos, que não conseguem não lembrar do saudoso padre Quevedo (1930-2019) à menor alusão a histórias desse jaez. O jesuíta, parapsicólogo de formação, sempre esteve certíssimo ao afirmar em seu sotaque madrilenho que esse negócio de fantasma, espírito, alma penada, bruxa é tudo cascata. No entanto, muitos outros fenômenos, na arte e fora dela, não deveriam acontecer, mas acontecem, reiteradas vezes. Como espetáculo, “The Old Ways” é o grande representante do subgênero do terror parapsicológico depois de “O Exorcista” (1973), o clássico de William Friedkin. Só faltou a água benta.