O filme selvagem e brutal da Netflix que inspeciona os recantos mais sinistros da natureza humana

O filme selvagem e brutal da Netflix que inspeciona os recantos mais sinistros da natureza humana

Sion Sono não é um diretor fácil. O grande público, que assiste a Não Olhe para Cima (2021), dirigido por Adam McKay, ou “O Irlandês” (2019), de Martin Scorsese, novos clássicos do cinema contemporâneo, acaba por se deparar em algum momento com a obra do japonês, um homem que leva a sério a máxima de que a arte serve para incomodar e, assim, sabe exatamente qual o seu lugar no mundo. Esses neófitos vão se surpreender, para o bem ou para o mal, principalmente se tomarem por parâmetro de comparação o que a indústria costuma lançar de tempos em tempos, contemplando o terror e o suspense, em especial, por óbvio, mas não só.

Já aqueles que têm alguma familiaridade com o trabalho de Sono reconhecem logo sua marca. Em “Floresta de Sangue”, o cineasta mantém sua ideia fixa por colegiais de uniforme que se entregam sem pudor a joguinhos sexuais regados a algum sadismo, brincadeiras aparentemente despretensiosas que não acabam bem, suicídios coletivos, a total insubordinação contra o tempo cronológico, as piadas metalinguísticas em que um lunático qualquer sempre aspira a ser um diretor de cinema e, por último, mas não menos importante, o sangue, recurso controverso que tanto pode acender o espectador quanto repeli-lo irremediavelmente.

O filme, de 2019, se volta para o que Sono sabe fazer de melhor, com providenciais inovações. Dono de um portfólio vasto, com quase cinquenta produções na conta ao longo de 32 anos de carreira, em “Floresta de Sangue” o diretor se volta para suas origens e entrega uma história em muito semelhante ao que apresentou em sua estreia, em 1989. “Bicycle Sighs” (“suspiros sobre uma bicicleta”, em tradução livre) também mostrava protagonistas fracassados que sonham em fazer cinema enquanto o restante da turma do ensino médio vai para a faculdade e ganha dinheiro. Igualmente delirante e cheio de excessos propositais, passando ao largo da mesmice, do tédio, três décadas depois, Sono compõe mais uma trama de um nonsense perturbador, mas nunca gratuito, que pode até se estender um pouco além do razoável, mas termina na hora certa. E Sion Sono ratifica como poucos o lugar-comum de que o passar do tempo é relativo.

A base de “Floresta de Sangue” é Joe Murata. O antagonista vivido por Kippei Shiina, em redor de quem todo o roteiro do diretor se movimenta, fecha quase todas as portas, contudo deixa uma janela entreaberta. Sono centra todo o mistério do longa nessa figura, de quem sabe-se muito pouco. Murata tanto pode ser o assassino em série que inspira o terror dos telespectadores do boletim de notícias, mas ao mesmo tempo diz ter frequentado Harvard, como um agente da CIA, a central de inteligência americana. O que o tipo encarnado por Shiina é mesmo é um megalomaníaco compulsivo, que usa de seu carisma para dar azo à sua vilania, que encontra um ambiente fértil a fim de crescer sem amarras junto a um grupo de teatro amador que encena uma versão bastante inusitada de “Romeu e Julieta”.

Taeko e Mitsuko, personagens das atrizes Kyooko Hinami e Eri Kamataki, coordenavam a montagem, até que uma tragédia se abate sobre a trupe. Sono aproveita o episódio para se estender, em flashback, acerca das experiências amorosas das garotas, momento da história em que entra o componente da homossexualidade entre mulheres, que aqui se torna outra de suas compulsões. Como se trata de um dos diretores mais ardilosos da história do cinema, não se pode afirmar se o evento traumático que colhe o grupo seria uma punição pelo desvio do comportamento tido por padrão — ainda que Murata e Mitsuko engatem um namoro estapafúrdio na sequência —, mas o que importa realmente é atentar para o fato de que o falso encenador tira partido da fragilidade da namorada. Outro dos pulos do gato para se enganar menos com “Floresta de Sangue”.

Curiosamente, o relacionamento dos dois é estimulado pelos outros membros da companhia. Misturando o real e o meramente sugerido de um jeito que só ele mesmo sabe, Sono dá uma guinada em sua narrativa e faz de Murata seu grande personagem central. O sinistro de sua figura não é detectado e, pior: o elenco lhe confia a produção do espetáculo, que passa a ser um filme, quando a história de fato se reveste de sua aura macabra. Murata torna-se quem é em essência, valendo-se de Mitsuko, Taeko e os integrantes da equipe para satisfazer seu instinto predador, dando sequência a um massacre cruento como poucas vezes se viu no cinema. É Sono dando razão ao inconsciente coletivo, que vê na pessoa do diretor de filmes um sujeito perigosamente ambicioso, obcecado por perfeição, que passa por cima de qualquer um e faz o que tem de ser feito a fim de obter o melhor enquadramento, a luz mais reveladora, as cores mais hipnotizantes. Para ele, cinema se faz com uma câmera na mão, muitas ideias na cabeça e mil demônios soltos à roda.

Sono fala pela boca de Murata quando este alega que filmes são emoções — e muito mais que as que o personagem de Kippei Shiina enuncia como constituintes básicas da alma humana, quais sejam, alegria, raiva, felicidade e tristeza. A inteligência subversiva de seu trabalho lança o espectador numa maçaroca narrativa que muitas vezes amalgama as quatro e tantas outras, fomentando tal confusão que é impossível sair da mesma maneira como se entra. Ombreando com mestres do naipe do John Carpenter de “Eles Vivem” (1988) ou George A. Romero (1940-2017), um dos realizadores que mais ajudou a popularizar (e refinar) o terror, Sion Sono não se incomoda em ser incômodo. Num mundo e num meio tão acostumados a só ver e ouvir o que não vá lhes ferir delicadas suscetibilidades, é um capital artístico digno de admiração.