Um dos destaques dos últimos anos é a ficção que trata das catástrofes, colapsos, apocalipses e distopias. Com a pandemia de Covid-19, caiu de vez a ficha: o ser humano pode desaparecer antes do fim do planeta Terra. Essa é uma percepção muito presente em romances brasileiros lançados no ano de 2021 e, também, em filmes blockbusters como “Não Olhe para Cima”, um dos tsunamis de audiência na Netflix. A discussão antes acadêmica e especulativa virou objeto concreto de produtos culturais. Arrisco dizer que esse conjunto de narrativas já forma uma “estrutura de sentimento” da época, uma maneira da arte ver as coisas, os lugares e as pessoas. Não é uma ideologia, mas sim um pensamento mais difuso que só as obras artísticas conseguem captar e antecipar. E para usar o vocabulário popular das redes sociais, o final dos tempos já é um trend topic da cultura contemporânea — o que não é pouca coisa e traz grandes consequências para as maneiras como enxergaremos o mundo daqui para frente.
Com o romance “A Extinção das Abelhas” (2021), Natália Borges Polesso escreveu um dos trabalhos mais interessantes para descrever o sentimento do desastre em que o mundo e o país mergulharam nos últimos tempos. As palavras-chaves são “colapso” e “extinção” numa cidade do sul do Brasil, no futuro pós-2020. Em meio ao desmoronamento da vida, o que se salva são afetos e redes de apoio de personagens femininas. Apenas uma mulher seria capaz de narrar a história contada por Natália.
O romance é narrado por Regina, uma mulher de 40 anos que vive nos escombros do Brasil moderno. O país e o mundo entraram em um estágio que só pode ser avaliado ou pensado por meio de uma máquina chamada “colapsômetro”. É esse aparato absurdo que dá a medida da situação: pessoas desamparadas, não há mais empregos, as “zonas livres” (de gays, imigrantes) e a comida contaminada pela empresa que restou na produção agrícola (definitivamente o agro não é pop, e sim apocalíptico).
“Ninguém estava comprando nada e os economistas dos programas de tevê tentavam encontrar palavras novas para descrever nossa situação planetária. A única coisa que compreendíamos era que não estávamos indo bem nos rankings do colapsômetro nem nos rankings econômicos. A região sul [do Brasil] tinha que pagar uma multa não sei pra quem, ou seria fechada em caráter permanente e nossos governantes deram uma explicação muito estapafúrdia na cúpula nacional do colapso”, conta Regina.
A escrita de Regina mescla histórias pessoais com observações sobre a quantas anda o mundo em colapso. No fundo, tudo está se desfazendo. O que pode restar ou ser a medida paliativa para viver? Regina foi abandonada aos oito anos pela mãe Lupe, que fugiu com pessoas de um circo para ter uma vida errante por países latino-americanos. O pai dela morreu. Quem vai dar suporte a ela são as vizinhas: o casal Denise e Eugênia (que tem a filha Aline). Regina namora Paula, que tem 60 anos de idade.
As personagens de Natália compõem um verdadeiro matriarcado que tenta remontar o que se quebrou. É a rede possível de sustentação de uma comunidade inexistente — o sonho neoliberal de que não há sociedade, apenas indivíduos. Nesse mundo desmoronado, Regina encontra no trabalho de “cam-girl” a única forma de sobrevivência material. Sua personagem nos vídeos pela internet (Divaine) é uma mulher com máscara de gorila — resultado de sua obsessão com a atração da mulher-macaco do circo.
“É estranho como a gente se acostuma rápido. O dinheiro caía. A personagem se desenhava. Divina. Divaine. Não me importei mais com a pronúncia deles. Fiz o workshop avançado que o site oferecia. ‘Como montar um verdadeiro show’. Fiz anotações pessoais: Divaine fala pouco, só o essencial; Divaine tem gestos? Trejeitos? Uma linguagem?; Divaine precisa aprender a dançar melhor; Divaine é mulher com pelos; Divaine gosta de usar brinquedos sexuais. Como é o show de Divaine? Eu sou Divaine. Eu não sou divina”, conta Regina.
As mulheres de “A Extinção das Abelhas” se encaixam na ideia dos “sujeitos monetários sem dinheiro” do pensador alemão Robert Kurz. Ele formulou justamente a ideia de um “colapso da modernização”. Porém o colapso imaginado por Natália Borges Polesso vai mais além da concepção kurziana do trabalhador descartável na globalização. É mais profundo e cruel. São figuras mutiladas física e emocionalmente. Não sei se a autora concorda, mas essa mutilação lembra as feridas das personagens de João Gilberto Noll.
Natália dividiu o romance em três partes. A primeira seção mostra a vida de Regina antes do grande colapso. Já a segunda parte é quase uma colagem de retratos da situação de mundo: trechos de noticiário, relatos científicos e imaginação distópica. Prevalece o tom ensaístico e reflexivo. O fluxo narrativo se quebra para preparar o terreno, afinal a terceira parte é o retrato de como funciona a vida depois do colapso consumado. Pós-vida? Biopolítica? Biopoder? Necropolítica? Gestão da morte?
Na parte ensaística do romance, Regina dá um exemplo de como se administram os corpos das mulheres no futuro próximo: “No Brasil, foi criado um jogo inspirado nessa prática criminosa, cujo objetivo é perseguir mulheres lésbicas e trans e homens trans. O governo se absteve de agir. Não houve pronunciamento oficial. Disseram que a existência do jogo era mentira. Os assassinatos, desaparecimentos, agressões e violência sexual cresceram. Até que começou o revide”.
Não há propriamente uma vingança a ser executada na terceira parte de “A Extinção das Abelhas”. A narrativa alterna as vozes de Regina e de Lupe, sua mãe. A saída encontrada pelas personagens é a fuga do Brasil, a busca por um espaço onde se possam construir novas relações humanas (matriarcados, obviamente). O país que colapsou é uma área impossível de viver. Numa carta à mãe, Regina fala de um “luto dos sonhos” e de um “aprender a dormir de novo, aprender a cansar um cansaço que não seja útil para dormir de novo e quem sabe sonhar de novo coisas inéditas”.
Demasiado pessimismo? Talvez não. Creio que Natália sugere uma virada de página. Alguns leitores chamariam de utopia em outras épocas. Na fuga para um lugar distante, Regina ouve as ideias de sua nova companheira, Lu: “Quero encontrar esse grupo de mulheres doidas que estão planejando a derrubada de algo, a tomada de algo, quero fazer parte de uma nova configuração de mundo. Um mundo em que eu possa existir, um mundo de que eu possa gostar. Não aquele que vivíamos, Regina, aquela invenção velha de mundo que colapsou na nossa cabeça. Aquilo eu não quero, aquilo sempre foi a morte. A minha e a dos meus”.
Narrar sentimentos como o do iminente colapso planetário (e nacional) exige outras formas de contar histórias. Acho que surgiu em 2020 uma nova sensibilidade brasileira para imaginar o futuro. O primeiro passo é, sem dúvida, reconhecer o desmoronamento do presente. E disso nos falam os últimos romances de Natália Borges Polesso, José Falero, Jeferson Tenório, Edmílson de Almeida Pereira, Bernardo Carvalho, Ana Paula Maia, Daniel Galera e Michel Laub.