Detetives solitários, divididos entre preservar a honra, maculada pela má conduta de um parente, e seus deveres profissionais são um dos muitos clichês que se recusam a sumir da produção audiovisual mundo afora. Em “Giri/Haji”, a repetição de modelos narrativos já experimentados e aprovados poderia ser um problema se Joe Barton, o criador da série, não atentasse para o importante detalhe de que o mundo definitivamente não é mais o mesmo desde Sherlock Holmes, o investigador surgido em 1887 que protagoniza os contos policiais do britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930). De tão célebre, o personagem tornou-se a maior referência em se tratando de enredos cheios de suspense, nos quais nem se cogita imaginar como a trama se desenrolaria sem sua presença grandiloquente.
A seu modo, Kenzo Mori mantém a tradição iniciada por Holmes. Também um homem um tanto misterioso, elegante — ainda que mal-ajambrado — e, sobretudo, respeitável, o tipo vivido por Takehiro Hira é um espírito atormentado, um homem ferido. Implicado colateralmente no assassinato de um chefão da Yakuza, a máfia japonesa, Yuto, o irmão mais novo de Mori interpretado por Yōsuke Kubozuka, é dado como morto, o que revolta o detetive, mais e mais tomado pela melancolia a cada sequência. Aqui, o trabalho de composição dramática de Hira é um deleite à parte em “Giri/Haji”, tal o seu entendimento acerca da densidade do papel. Cria do teatro, com uma montagem de “Hamlet” dirigida por Yukiko Ninagawa no currículo, o ator transpõe para o formato empregado na série a profundidade exigida pelos palcos sem o menor esforço e sem prejuízo da fluidez do roteiro de Barton. Disposta ao longo de oito episódios de uma hora em média, a primeira temporada se estende sobre os conflitos éticos de Mori em torno do caso que passa a ser para ele uma questão personalíssima, até porque Yuto não é o único a ter uma possível responsabilidade no crime. Entre o céu e a Terra há muito mais mistérios do que supõe a vã filosofia detetivesca de Mori.
Coproduzido pela BBC londrina e a Netflix, responsável pela distribuição, a série contou com um orçamento polpudo, a fim de garantir que as gravações entre Tóquio e a capital inglesa transcorressem sem maiores contratempos. Boa parte do enredo se desdobra em Londres, cidade em que Mori passa a morar depois de designado para assistir a um curso para o melhoramento das técnicas de investigação, álibi perfeito para dar continuidade a seu trabalho sem despertar suspeitas e sem o peso de ter de lidar com Taki, a filha adolescente, personagem de Aoi Okuyama, portadora de distúrbios psiquiátricos graves; Rei, a mulher sobrecarregada, de Yūko Nakamura; e Hotaka e Natsuko, os pais idosos que moram com ele, papéis de Togo Igawa e Mitsuko Oka. Yuto surge como um espectro no decorrer do texto, em analepses nas quais Kubozuka corresponde ao domínio de cena do protagonista, uma alma furiosa que tenta se libertar a todo custo. No fundo um espelhamento do irmão.
Mesmo em Londres, Mori obedece a seu faro e concentra suas operações na comunidade nipônica da capital do Reino Unido, certo de que vai desvendar o enigma que liga a execução do gângster da Yakuza à morte do irmão. Num desses, digamos, trabalhos de campo, conhece Rodney Yamaguchi num bar gay; à primeira vista, o garoto de programa vivido por Will Sharpe só lhe inspira estranhamento e um mal disfarçado asco, mas Rodney se mostra muito mais merecedor da sua confiança do que ele supunha. É por meio dele que o investigador fica sabendo de um lugar onde pode dar início à segunda etapa de suas averiguações, valendo-se de sua rara intuição para concluir que está sendo sabotado por seus chefes.
O respiro cômico-romântico cabe a Kelly Macdonald. Na pele de Sarah Weitzmann, Macdonald também dispõe de sua cota de lugar-comum vivendo a mulher que se destaca num meio eminentemente masculino, atrapalhada e de todo envolvida nas trapaças do amor. Numa relação estritamente profissional no começo de “Giri/Haji”, Weitzmann, engraçada mesmo involuntariamente (em especial quando involuntariamente), concebe com Mori um casal de almas gêmeas amaldiçoadas por suas escolhas e suas renúncias, e também por esse motivo acabam se dando uma chance.
Fazendo uso de uma forma menos cabeçuda do efeito Rashomon, Joe Barton elabora um trabalho que se esmera pela coesão, tão harmonioso e fluente quanto possível numa narrativa que se fende em inúmeras subtramas, um dos calcanhares de Aquiles de “Giri/Haji”. A inventividade do roteirista, aliada ao talento de diretores como Ben Chessell e Julian Farina, elevam o nível da série, que mesmo sem reinventar a roda consegue fugir do mais do mesmo.