O filme mais assistido da história do cinema indiano está no catálogo da Netflix

O filme mais assistido da história do cinema indiano está no catálogo da Netflix

Cheia de encantos tão seus, a Índia soube como nenhuma outra terra catalisar a curiosidade em torno de sua cultura. Orgulhoso de sua história, o povo indiano se vê representado nos muitos filmes que a indústria cinematográfica do país produz todos os anos, sobretudo quando replicam fatos da realidade.

Aamir Khan, o protagonista de “Dangal”, intriga o espectador tanto como a própria Índia. Em 2014, Khan estrelou “PK”, a pitoresca comédia de ficção científica sobre um extraterrestre que vem à Terra e se choca com as tantas aberrações daqui, a maior bilheteria de Bollywood de todos os tempos. Há vinte anos, em 2001, o ator encarnou o personagem mais importante do musical “Lagaan”, última produção hindu indicada ao Oscar antes de “Quem Quer Ser um Milionário” (2008), de Danny Boyle, eleito o melhor filme da premiação. E então surgiu “Dangal”.

Em “Dangal” (“luta livre” em hindi), drama de família ancorado no esporte, Aamir Khan volta como o lutador amador Mahavir Singh Phogat, que não consegue realizar o sonho do ouro no wrestling, modalidade de luta de contato meio marginalizada. Lançado em 2016, o filme é inspirado na história real desse homem, um atleta frustrado que tem se contentar em ser assistente administrativo num escritório. Para completar sua desgraça, sua mulher, Daya, vivida por Sakshi Tanwar, só gera filhas mulheres, e como a vida só lhe dá limões, Mahavir resolve fazer a melhor limonada possível: Geeta e Babita, as duas filhas mais velhas das quatro que o casal tem, personagens de Fatima Sana Shaikh e Sanya Malhotra, terão a honra de servir de cobaias para que esse pai amargurado possa, finalmente, concretizar sua grande aspiração.

“Dangal” poderia tranquilamente descambar para um dramalhão daqueles, uma vez que Mahavir não passa de um sujeito patologicamente dominador, mesmo cruel — e até o momento ninguém sabe ao certo que consequências seus desmandos paternos tiveram sobre as vidas de Geeta e Babita, hoje mulheres feitas de 33 e 32 anos, respectivamente. Há passagens quase monstruosas no roteiro do diretor Nitesh Tiwari em parceria com Piyush Gupta, Shreyas Jain e Nikhil Mehrotra, a exemplo da que registra as meninas, então interpretadas pelas atrizes-mirins Zaira Wasim e Suhani Bhatnagar, tendo os longos cabelos cortados depois da queixa de Geeta, que alega, falsamente ou não, que a irmã está com piolho por lutarem no terreno do arrozal. Alegoria da própria Índia, um país arcaico, ainda profundamente rural e fundado em tradições patriarcalistas e obsoletas — o sistema de castas, uma anomalia social de pelo menos 2.600 anos, vige no país como se fosse a coisa mais natural do mundo, em pleno século 21 —, a maneira como Mahavir pensa a vida explica boa parte dos problemas do subcontinente, ávido por entrar de vez no terceiro milênio, mas com o outro pé fincado na era pré-cristã. A Geeta e Babita só cabe obedecer, ainda que o espectador se remexa na cadeira, à espera de alguma reviravolta que se desdobre na insurreição de uma das duas, mas lamentavelmente isso vai ficar para uma próxima. Muito mais que apenas um pai austero, Mahavir dispõe das filhas como quer, e nada mais do que possa vir de sua tirania — o uso de roupas masculinizadas, mais propícias ao treinamento e aos combates em si e interferências decerto menores, mas não menos truculentas, como na alimentação das meninas (a sequência em que ele permite que comam um salgado de rua pela última vez, e depois corta a pimenta da dieta das filhas, verdadeiro suplício para um indiano, um dos poucos respiros cômicos da trama) — impressiona.

A música é, sem dúvida, responsável por ajudar a conduzir a história de forma um pouco mais leve, mas Tiwari não deixa que a relevância do enredo se perca em cenas fofas, mais palatáveis ao grande público, o estrangeiro sobretudo. Nada de “Eye Of The Tiger” ou alguma outra composição motivacional, como em “Rocky, O Lutador” (1976), dirigido por John G. Avildsen (1935-2017), para pontuar a longa espera de Geeta até subir ao lugar mais alto do pódio. A propósito, o filme não se alonga sobre os obstáculos impostos às mulheres que ousam se dedicar à luta livre. O roteiro destaca o pioneirismo de Geeta e Babita, obrigadas a disputar títulos com competidores homens, até que, como por encanto, surge uma equipe composta exclusivamente de mulheres, treinada por Pramod Kadam. Mesmo atabalhoada, deixando o público meio à deriva, a entrada do personagem de Girish Kulkarni em cena desencadeia em “Dangal” a virada mais forte da história, quando Geeta chega à Academia Nacional de Esportes. Babita também persevera na carreira, mas é a filha mais velha de Mahavir a única a competir por um título internacional, os Jogos da Commonwealth, a Comunidade das Nações (ex-Comunidade dos Países Britânicos), em 2010. Dividida entre a técnica de Kadam e a experiência intuitiva do pai, Geeta consegue amalgamar os conhecimentos de um e outro, escrevendo de vez seu nome na história do esporte na Índia. Babita também chegou ao Commonwealth no mesmo ano, mas competindo pela prata; quatro anos depois, seguiu os passos da irmã e também chegou lá. Desde 2019, é filiada ao Partido Bharatiya Janata, o Partido do Povo Indiano, de direita, uma das duas legendas mais importantes do país.

Insinuando a disseminação do girl power, a influência da mulher no mundo contemporâneo, “Dangal” curiosamente se furta a tecer algum comentário acerca da onipresença de Mahavir na trajetória das filhas, o que, é forçoso repetir, se constitui num sintoma inegável do atávico atraso civilizatório da Índia. Talvez algum dia ainda surja uma Geeta ou uma Babita que se fizeram por si sós, na luta livre ou no balé. Aliás, é até possível que já exista, lutando antes de mais nada, contra a subjugação de uma casta qualquer. A conferir.