Listamos sete filmes do catálogo da Netflix que abordam os descaminhos do homem em sua jornada pelo mundo. Suspense, drama, mistério e ficção científica. Em comum entre eles: a capacidade de causar reações extremas e prender o público até os créditos finais. Na lista, entre outros, “Pieces of a Woman” (2020), de Kornél Mundruczó; “Longa Jornada Noite Adentro” (2019), de Bi Gan; “Blade Runner 2049” (2017), de Denis Villeneuve; e “Um Contratempo” (2016), Oriol Paulo. Os filmes estão listados de acordo com o ano de lançamento, do mais novo ao mais velho. As sinopses são de Giancarlo Galdino.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

O Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, tragédia, caos, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se apreende das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.

É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.

O cinema feito no Oriente é referência em criatividade. Livres de tantas amarras comerciais e donos de uma tradição milenar, que perpassa histórias fantásticas, fábulas e lendas, a Ásia é pródiga em oferecer ao publico — e ao mercado — produções inventivas, originais, inovadoras. O trabalho de Bi Gan é uma lufada de ar fresco no embolorado ambiente cinematográfico dos últimos dois anos, em se desconsiderando o circuito de filmes autorais, por evidente. O uso da técnica de 3D, já obsoleta apenas três anos depois, mas surpreendente até então, é simplesmente arrebatadora. As tomadas se sucedem sem edição, por meio filme, e isso é só uma pequena prova do preciosismo do diretor Bi Gan, um virtuose nesse expediente. O espectador é conduzido pela voz do narrador em off para o interior de uma boate, como se estivesse tendo um delírio, um transe, um sonho. Os movimentos são precisamente cuidadosos, calculados, o que evidencia a beleza dos planos para além do que poderia ser razoável, mas nada disso acontece sem que essa delicadeza tenha um propósito por trás. E o filme só pode mesmo ser singelo, doce, frente a natureza lírica do enredo. Um homem volta à sua cidade natal devido à morte do pai, encontra a foto de uma ex-namorada e, a partir de então, sai à procura dela. E essa jornada, conforme se vê na obra de Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Alain Resnais (1922-2014) — e mais recentemente, Martin Scorsese e Tim Burton —, que tão magistralmente souberam registrar a passagem do tempo numa determinada configuração espacial, não é nada linear, assim como a vida. Todos esses artistas, Bi Gan inclusive, têm desenvoltura acima da medida quanto a apresentar soluções fílmicas que condensam a ação no presente e a que já está dada de maneira absolutamente verossímil. Quanto aos lugares, são como as diversas telas numa exposição, cada qual com seu sentido próprio, mas convergindo, de forma a compor um todo homogêneo. Para Bi Gan, a feitura de uma peça cinematográfica é, ainda no ovo, a possibilidade de ousar, subverter qualquer paradigma já estabelecido, sem subtraminhas bem narradas a fim de ganhar o público. O cinema de Bi Gan é de ação, no melhor sentido da palavra. “Longa Jornada Noite Adentro” é um filme que nos sacode, como a cobrar de nós alguma atitude, frente àquela história e à própria vida.

Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um humano. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o homem certo para o projeto certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Em “Blade Runner 2049”, Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à altura.

Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem, mas com propósitos nada altruístas. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Em “A Chegada”, um suspense psicológico não muito distante da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo enredo, mas cabeça demais. Se você não tiver medo de filmes que apresentam temas a princípio recorrentes, mas com uma abordagem inteiramente sofisticada e original, não deixe de assistir a essa joia rara do bom sci-fi.

“Um Contratempo” segue o padrão dos filmes de suspense policial espanhóis produzidos nos últimos anos: uma história com protagonistas especialmente bonitos, um anticlímax atrás do outro, locações soturnas e a dose certa de violência — neste caso, dosada até demais, o que não chega a ser algo que deponha contra o trabalho do diretor Oriol Paulo, um discípulo aplicado dos mestres Alfred Hitchcock e Brian de Palma. A premissa é simples, quase simplória: um sujeito diz ser acusado por um crime que não cometeu e procura a melhor advogada que encontra. Ela faz questão de saber toda a história, com todos os detalhes. Ao passo que ele se explica, ela o contesta — afinal, antes ela que a promotoria, ou o júri, ou, o pior, o próprio juiz. Tudo tem de sair de forma a fazê-lo parecer de fato inocente e, assim, se livrar da cadeia. O caso é que, quanto mais ele fala, mais se enrola (até porque a situação toda é mesmo um grande enrosco), mais o crime se distancia de um desfecho satisfatório para sua defesa e mais controversa se torna a advogada, sem que o espectador saiba ao certo quem desempenha que papel ali.

Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados – ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.