Uma série de traduções trouxe em 2021 novidades da literatura chilena para o Brasil. Diamela Eltit, Nona Fernández e Alejandro Zambra tiveram obras lançadas no mercado brasileiro. Esse movimento oferece mais trabalhos de escritores e escritoras fundamentais da atualidade e coincide com a energia política que sacudiu as ruas do Chile nos últimos anos. Os chilenos preparam atualmente o processo para elaborar uma nova Constituição do país, o que pode mudar os rumos do continente.
O dado político mais recente foi a vitória de Gabriel Boric na eleição para presidente do Chile. A escolha de um jovem de apenas 35 anos é a prova de que existe, de fato, uma nova política — e não artifícios para enganar turistas desavisados. O resultado eleitoral ainda mostrou a potência da cultura contestadora de um país que serviu de laboratório para atrocidades do século 20, mas que sobreviveu ao não deixar se cair na apatia e ao valorizar como poucos lugares a memória coletiva.
Os chilenos foram até recentemente o símbolo de uma estabilidade política conservadora na América Latina. Vendeu-se a fantasia de uma ilha no meio de um mar em chamas na região. Uma espécie de utopia do Fim da História. Ao longo de 30 anos, parecia uma sociedade imune a radicalismos. Mas, como o personagem do romance “Casa de Campo” (1978), de José Donoso, era a imagem da criança arrumadinha que escondia, na verdade, a energia incontrolável debaixo das roupas enfeitadas.
Os visitantes estrangeiros poderiam se impressionar com as aparências de uma economia liberal e moderna. Ao mesmo tempo, porém, não havia como esconder que algo de muito perturbador estava por trás daquela maquiagem social feita de vinhos, salmões e estações de esqui na neve perto da capital Santiago. Estudantes pediam ajuda em dinheiro na rua, como pedintes, para bancar o crédito da faculdade, e manifestações fechavam diariamente as avenidas de algum ponto da cidade.
O espaço público do Chile estava doente, tal qual se via na prosa de Diamela Eltit, a grande narradora do desastre de seu país a partir dos anos 1980. O livro “Lumpérica” (1980) é desconcertante e inclassificável. Uma ditadura puro sangue, tocada por Augusto Pinochet, havia jogado mais da metade da população para baixo da linha de pobreza. Era pior do que o Brasil, mas os chilenos e os estrangeiros cuidavam de vender o “show case” para toda a região e para o mundo.
Até mesmo um produto de exportação, como a escritora Isabel Allende, exibiu o abismo histórico em que o país havia se metido. Sua biografia virou uma interessante minissérie Isabel, no Amazon Prime. E até seu best-seller mundial, “A Casa dos Espíritos” (1982), expõe a energia subterrânea do país, sufocado pela bestialidade de uma ditadura. Um governo que combinou um liberalismo radical com as técnicas mais brutais de violência física contra seus cidadãos e cidadãs.
É essa cultura antiviolência que produziu Gabriel Boric. Um estudante nascido no extremo sul da Patagônia chilena, povoada por imigrantes iugoslavos. Boric é sobrenome croata. Ele foi parar na capital nas ondas do movimento estudantil que a partir de 1990 nunca deixou a chama da contestação se apagar. Em 2019, a moçada deu a estocada final com revoltas diárias e a cobrança por uma nova Constituição. Conseguiram uma vitória que colocou o governo de joelhos.
As leis deixadas por Pinochet caducaram. O sistema privado de aposentadorias, por exemplo, se revelou um fracasso na prática. O crédito estudantil fora a solução pensada para abolir o ensino público e adotar a educação privada para todos, nos moldes do mais vulgar neoliberalismo — outro fracasso retumbante. Com esse pano de fundo, os chilenos encenavam uma peça farsesca de estabilidade política e econômica. Era, na verdade, uma ruína como a dos demais vizinhos latino-americanos.
O escritor Roberto Bolaño foi embora do Chile, tornando-se um exilado em estado permanente. Não se preocupou em voltar para aquela terra que o expulsara. Seus livros são testemunho do delírio coletivo que resolve todos as questões com a violência. Um horror que desemboca em reações brutais contra a população mais vulnerável (pobres, mulheres, indígenas). O desaparecimento de corpos deve ser a contribuição da política chilena para o mundo — algo compartilhado com os argentinos.
Mas o outro lado do Chile, o que vale a pena saudar, vai dando as caras no Brasil. Uma produção literária contemporânea de alto nível: “Space Invaders”, de Nona Férnandez; a obra completa de Alejandro Zambra; e finalmente os romances de Diamela Eltit, como “Forças Especiais” (traduzido por Julián Fuks). Ainda há o filme sobre o escritor Pedro Lemebel no Amazon Prime. Espera-se que, em breve, saiam por aqui os livros de Benjamin Labatut, a nova sensação da literatura chilena no mercado internacional.
Artistas excepcionais e a energia política das ruas são o que de melhor o Chile ofereceu ao mundo nas últimas décadas. O pior foi, sem dúvida, a experiência de um modelo de país que combina o liberalismo desastroso e a violência dos tempos da ditadura. Uma violência que, de certa forma, se manteve na democracia da Concertação (o acordo político pós-Pinochet). Nada poderia ser mudado — até que as ruas colocaram um ponto final nisso. É um tempo de virada de página.