Premiadíssimo, drama complexo e intimista que passou despercebido na Netflix é um dos melhores filmes de 2021

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O amor pela arte nem sempre é correspondido, nem mesmo por quem devota sua própria vida a essa amante infiel, insensível, traiçoeira — e principalmente para quem espera que ela lhe revele verdades inalcançáveis aos outros mortais, que só aqueles seres quase tão incorpóreos quanto a própria arte, dotados de um espírito tão elevado que quase flutua para além da matéria, podem acessar.

Essa rejeição passa a ser o drama de Sharad, o protagonista de “O Discípulo”. No filme de 2020, o diretor Chaitanya Tamhane, se vale da agonia do músico vivido por Aditya Modak para construir seus argumentos sobre o que quereria dizer a tal busca da verdade mediante o sentimento artístico. Essa procura, logo transformada em obsessão, acaba por somente reverberar mágoas atávicas, de Sharad por si mesmo. Aos poucos, ele percebe que sua ânsia por ser um mestre da música clássica indiana, o envenena. Sua ideia de felicidade, que só poderia atingir se primeiro chegasse a esse objetivo, se constitui para ele no maior estorvo de sua vida, uma vez que o sonho lhe foge, como se o repelisse. Despender suas forças estudando dia e noite, se esmerando por dominar notas inacreditavelmente altas durante um exercício vocal, é inútil: é a música que escolhe quem quer por seus representantes, e por mais talento e dedicação que lhe devote, Sharad não faz parte desse círculo místico. Não tem it. Falta-lhe alguma coisa.

Sharad fora treinado à exaustão pelo pai. Tanto empenho o tornou um especialista de formação sólida, capacidade rara para acusar acordes dissonantes, íntimo de sons que não parecem mais que uma algaravia selvagem para quem não tem intimidade com o assunto. Contudo, tem de se sujeitar a morar com a avó — perdida no fogo cruzado entre o neto e a mãe, que roga que Sharad deixe de tentar vender registros de canções clássicas de que ninguém gosta e tenha um emprego “de verdade”, com carteira assinada, férias, seguro de vida —, recebendo uma ninharia por suas relíquias. Esse gênio incompreendido tem algum alento em passeios de moto pela noite de Mumbai, sempre ouvindo suas fitas falsificadas com os ensinamentos de Maai, uma antiga mestra hindu que preconiza a castidade e a constante autoanálise para se estar apto a perceber a verdade interior e, por conseguinte, a perfeita execução da arte musical. Esses momentos são captados em câmera lenta, quando Tamhane dá ao público a sensação de que seu personagem central confunde realidade e fantasia em algumas passagens de “O Discípulo”, o que se torna ainda mais vívido graças ao toque da tanpura, instrumento que dá apoio à voz de Sharad. O diretor faz com que essas sequências prolonguem-se além do convencional, mesmo para Bollywood, o que força o espectador a redobrar a atenção e se prova um expediente indispensável quanto a entender o personagem de Modak mais claramente.

Tamhane sabe como seduzir o espectador, fazê-lo acreditar que a apresentação da música exótica de um país distante, com que certamente não tem a menor familiaridade, será uma experiência, no mínimo, curiosa. E acaba sendo mesmo. Mesmo com figurantes que se agitam de um lado para o outro e entram na sala sem cerimônia, gerando um barulho residual que também pontua o inchaço populacional hindu, o espetáculo é garantido, até porque a forma que o diretor escolhe para enquadrar essas cenas coroa a poluição da imagem como um predicado estético. “O Discípulo” é um filme sobre música com música, em que sons só adquirem relevância se pontuados pelos registros pictóricos certos. A câmera de Tamhane volta-se para o olhar de Sharad quando deseja transmitir a quem assiste a razão de ser do filme; as expressões de Modak, vazias praticamente todo o tempo, perpassam fúria, incerteza, volúpia, dor, emoções de um artista amargurado, explícitas quando se volta a contemplar sua figura como um todo pelo jeito com que maneja a tanpura. Quando Sharad está outra vez inteiro, mas fragmentado por dentro, sua figura hipnótica evidencia que aquele é mesmo um homem aos pedaços, que só parece menos falto de sentido quando tem por perto seu guruji, seu líder.

Retrato de uma vida que se perde por motivos um tanto idiossincrásicos, “O Discípulo” até poderia ter virado o “Nasce Uma Estrela” indiano com sinal trocado, mas é maior que qualquer comparação. Como se tivesse inventado a fixação pelo desempenho perfeito para fugir de si mesmo, Sharad termina a história sob a figura de um homem que ostenta um bigode ainda preto, mas precocemente envelhecido, muito mais gordo do que no início e sem todos os sonhos que lhe fizeram mais mal que bem. Do resto que lhe sobra, se refaz, tendo a sorte de conseguir viver daquilo que julgava ser sua própria vida, malgrado de uma maneira que lhe parecia abjeta, mas que só lhe soava dessa forma porque era um sujeito honesto demais, mormente com seus sentimentos. Um sonhador.