De dois modos distintos, mas por caminhos paralelos, dois gênios aumentaram a vida do homem, pela dor, pelo amor, pela vida e pela morte. A célebre escultura “O êxtase de Santa Teresa”, do Italiano Gian Lorenzo Bernini.
Temos também um poema deste que tanto era perito em poemas visuais. Trata-se de um curto — porém poderoso — terceto, chamado “Transverberação de Santa Teresa”, do poeta Carlos Drummond de Andrade. Aqui podemos ver o poema, mais do que ler. “Visão celestial, doce delírio. Da cabeça aos pés nus êxtase (orgasmo?) relampeia”.
Vale um passeio de ideias por essas duas monolíticas obras, e seus diálogos inesquecíveis. É a obra de arte perfeita, inesgotável, enquanto Bernini esgota o expectador. Há signos demais, vetores conduzem nossa leitura para um rumo, e subitamente mudam, acenam para outra direção, outra paisagem.
A imagem da morte, abaixo da estátua, impossível de ser fotografada junto dela, a compõe, sem pudor de estar dela descolada. Os raios celestes, colocados por detrás, também fazem parte da peça composta de várias peças.
Compõem também a cena a pomba no vitral, os cardeais que veem tudo, mas nada entendem (um deles segura um livro). A disposição deles sugere ser o livro da mulher que flutua. Eles têm em mãos “O Livro da Vida”, autobiografia escrita por uma mulher de 30 anos — espécie outra de balzaquiana.
Incompreendida em seu despudor, temos uma Santa vanguardista. Esta só poderia mesmo cair no gosto de Drummond. Em pleno século 17 a escultura é quase uma “instalação pós modernista”.
Como explicar a cena? Como explicar o livro da freira indecorosa? A Igreja soube. Santificando-a, elevando sua escandalosa fé para o solo seguro da transcendência e incomunicabilidade: a única testemunha — o anjo humano, que vemos atacando a mulher angelical — também está em êxtase. É dele os golpes celestes contra as entranhas da Santa.
Logo ele, um anjo, tudo faz e vê. Ele, que jamais poderá, nem se quiser, explicar-nos o fato atabalhoado, conflitante. Nós sabemos, os anjos têm uma língua própria. Não conseguiria expressar por palavras. Assim, o anjo de Bernini contraria o embaralhar de possibilidades interpretativas do texto da autobiografia: se o semblante de Santa Teresa fica entre o prazer e a dor, quanto ao dele não nos resta dúvida: goza da cena, extrapola em alegria o anjo da flecha flamejante, e levanta, em poses travessas, o hábito flutuante. Na dramática arte barroca ele não esconde, está em cena.
Fiz dois cursos de História da Arte, um de graduação; o outro, na pós-graduação, mais para dialogar com as referências às artes plásticas que Proust faz na “Recherche…” Nos dois cursos os professores ficavam nitidamente receosos diante de Bernini. Nos dois vi a arte Barroca em uma aula, Bernini, em outra. Uma exaustiva tarde/semana só para ele. A formação dos dois professores era distinta. Cada um fez a sua trajetória com pessoas diferentes, lugares outros. Um era mais ortodoxo; o outro já levava em conta recepção, efeito. Usava as teorias de Iser, transportava com cuidado os conceitos do “Ato da Leitura”. Atentos, mas nem tanto, com impressões que de tão cuidadosas, balançavam no campo do “se non è vero, è ben trovato”; talvez ensinando para os alunos uma “modalidade de crítica”.
A obra em questão é um susto. Os três sabiam do que falavam e calavam. A roupa flutua mais que a própria santa, e não permanece quieta no corpo: para além de uma representação da nudez pelos pés, há uma nudez barroca, e vem vestida dos “pés à cabeça”, cabeça no mínimo parcialmente coberta pelo hábito. Se vestida na contraface, escandaliza, dúbia, na face que ilumina, em excesso, os orifícios. Especialmente a boca.
A separação claro escuro, impossível à alvura do mármore, tem, nos relevos do tecido, a sua separação claramente criada pela mão do escultor, e pertencem cada uma a universos diferentes, cujos mistérios nos é permito esbarrar, mas nunca integralmente deles vivenciar: o hábito é a Igreja; ela, perfurada (crucificada pelas entranhas), exibe os membros que Jesus teve perfurado na sua crucificação. Outro contraste? Talvez.
Mais o tecido nos conta de toda a atmosfera deste momento propositadamente carregado da autobiografia desta Santa. Ela era, em público, rigorosa e sem concessões. Clara em suas leis. As suas carmelitas andavam descalças: obsessão pela carne, que precisa sofrer, ser violada, para a alma se elevar.
Constrangedora cena, ainda assim. Para um Católico, então! As palavras escolhidas por ela, para a composição da cena, contam-nos de certa ingenuidade, como se fosse possível não maldar uma penetração que a leva para um “requebrar” incessante (sim, ela diz isso), gemidos e ais, dor prazerosa, da qual não queria escapar, mas sim nela se fixar: este sacrifício (ela não reage, nem teme) de uma Santa da Integridade estava inteiro, nela e com ela — nos seus atos e palavras. Pede integridade aos fiéis, pede que sejamos íntegros em seu “As moradas do castelo interior”, totais em cada coisa que fizermos.
A crucificação aqui não se dá por pregos com ferrugem; eles rompem Jesus, e ali ficam. A flecha é retirada e colocada de novo. No relato da Santa, o anjo repete o gesto várias vezes. Exala de seu personagem, no texto da Santa, certa convicção subalterna, típica de que cumpre uma ordem cujo sentido não questiona e não busca compreender.
O anjo de Bernini é quase um Adão em miniatura, mas sem qualquer vergonha de sua Eva: há na figura angélica algo de humano; na figura humana a criação de uma mística especial, por fora, na sua nudez vestida, e por dentro: um fogo vermelho ardia em brasa, na ponta da flecha, para melhor rasgá-la, trocando carne mortal por luz eterna. Ela não só perfura, vê-se pelo fogo que traz: ela ilumina.
Teresa vai além — preenche: “sua luz encheu-me do amor de Deus”, aquele divino, criador, cujo sopro de Deus, de Michelangelo, eternizou: um sopro, impalpável e indubitável, como a luz e o calor, físico, orgástico.
Vem Drummond, com uma seleção vocabular que compete — ou no mínimo não quer ficar atrás de Bernini — com a escultura, encarrilhando uma palavra explosiva atrás da outra: são palavras luminosas: mais, tão luminosas quanto os raios da graça que a tudo arrebata atrás de Teresa.
Com três palavras nada inocentes (há alguma?), o poeta brasileiro vem, categórico e fecha: “êxtase” ganha o nome pagão ocultado por Bernini no título da escultura. Este nome não é sequer sugerido na autobiografia de Teresa. Êxtase, em Drummond, é orgasmo, mesmo entre parênteses e com uma interrogação — ironia travessa, pois não oculta. Óbvia, como o semblante do anjo: claro enigma.
No poema, mais um sacrifico para Teresa. Perfurada pela flecha flamejante, consumida pelo fogo do amor de Deus. Teresa, na pena de Drummond, relampeia. A imagem não é gratuita. Em descompasso com esta festa da graça de Deus para agraciar corpo e alma, a força do relâmpago drummondiano emite luz, mas não as da graça. De nada servem para iluminar a cena, as luzes da graça divina dão conta suficientemente do perímetro. A luz contrasta, barroca, com a da escultura: é de trevas. No imaginário ocidental o relâmpago anuncia tempestade, tragédias. Dá notícia de céu escuro e mal-humorado: seus sons e estrondos são como grunhidos e rangidos celestiais, pronto para nos castigar pelos pecados escandalosos que fazemos. Palavra ideal esta: coloca em cena um sentido do corpo que fala, anuncia, conta. Qualquer menção a ruídos é sugerida, mas não desenvolvida.
Drummond, diante de duas referências prévias, uma verbal — “O livro da vida”; e a outra visual — a escultura —, vê nas duas uma festa do corpo. Tudo é contraditoriamente físico neste “inusitado resgate de um algo a mais espiritual”. O relâmpago que fecha reboa por toda a cena, a estraga, a escurece. Esta palavra pega o sentido da audição para si, em uma cena que, apesar de confusa, não é sonora. Teresa, se relampeja, é como um relâmpago que anuncia as tempestades por vir.
Fosse o poema de Bernini ou Teresa, este arauto da força da natureza falaria benesses divinas. A luz de Drummond é negativa e trevosa. A Teresa de Bernini tem a boca aberta, mas não sugere ou anuncia um grito.
O relampejar de Teresa pode ter luz, som. Os fatos reboam o seu telúrico som, além de anunciarem uma tragédia colocada por Bernini: a descolada e circular (infinita?) roda da morte, embaixo — Drummond acrescenta o relâmpago; Bernini, a morte.
Santa Teresa não recorre a estes signos para falar de morte nesta cena; a finitude é exaustivamente comentada no livro que escrevera: ela estava convalescente de uma grave doença.
Estava mesmo arrebatada, em êxtase, crente de ter sido salva por um milagre de seu esposo, Jesus.