Duelos de tribunal, protagonizados por promotores tomados da vontade de exercer seu ofício em plenitude, ou seja, botar atrás das grades um assassino confesso, e advogados cujos honorários nababescos não poderiam ser estímulo maior quanto a defender toda a sorte de facínora nunca faltaram no cinema. Apesar dessa verdade irrefutável, Gregory Hoblit decidiu apostar no gênero, aproveitando, por óbvio, para se valer de alguma boa ideia que o livrasse da pecha de bom imitador. O resultado veio à luz em “Um Crime de Mestre” (2007), um thriller com tudo o que já se viu em histórias com essa configuração e, mesmo assim, original.
Anthony Hopkins decerto usara no trabalho de Hoblit a experiência adquirida quando interpretou um dos maiores psicopatas de Hollywood. Aqui, há traços evidentes de Hannibal Lecter, o psiquiatra forense lituano de “O Silêncio dos Inocentes” (1991), de Jonathan Demme. Obrigado a emigrar para os Estados Unidos ainda garoto devido a um grande trauma, Lecter desenvolve seus próprios transtornos — e um paladar bastante característico. Por seu turno, Theodore Crawford também sente um gosto irresistível por sangue, mesmo que o tenha refinado ainda mais que o personagem do filme de Demme. As semelhanças entre os dois — Lecter consagrado; Crawford, injustamente perdido nas brumas do tempo (e muito se especulou quanto à “necessidade” de uma sequência) — saltam aos olhos logo no introito de “Um Crime de Mestre”. Ambos homens que trabalharam muito para subir — o psiquiatra chegara mesmo a enfrentar apuros de dinheiro antes de fugir para a América, quando da perseguição a judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e é precisamente num episódio relacionado à guerra que se dispara o gatilho de sua loucura —, Lecter e Crawford se tornaram deuses ex machina, nietzschianamente poderosos. Acima do bem e do mal, a razão lhes parece um conceito muito relativo e relativizável, entendido como mero desdobramento de circunstâncias que eles se esmeram por ser-lhes sempre favoráveis.
Observando essa premissa, Hoblit deita e rola, conferindo ao engenheiro aeronáutico vivido por Hopkins uma aura de Hannibal Lecter vegetariano, limpinho. Crawford flagra a mulher, Jennifer, vivida por Embeth Davidtz, quase trinta anos mais nova, aos beijos com um amante. Cancela seus compromissos e volta para casa a fim de tirar satisfações, e quando ela chega, depois de uma sequência em que Hopkins e Davidtz lavam a roupa suja do jeito mais refinado que dois grã-finos, encastelados numa mansão luxuosa, poderiam — e os diálogos escritos por Daniel Pyne e Glenn Gers são exatamente isso — verifica-se que a sofisticação é mesmo para ferir. O embate entre o casal é o único momento em que Crawford inspira pena, sentimento desprezível para um maníaco, e de tal forma poderoso, que ele acusa o golpe. Quando lhe prega o último sermão, deixando claro que descobrira tudo, ela se volta e recebe um tiro, milimetricamente calculado para atingir uma área vital do cérebro, mas preservá-la viva. Quando a polícia aparece e o tenente Robert Nunally começa um interrogatório prévio, no intuito de saber onde está pisando, Crawford não faz nenhuma questão de esconder que alvejou a mulher, o que vira um paradoxo, já que a arma não aparece e, portanto, não há crime — mote central da trama; o arco dramático desse núcleo se fecha quando o tenente, interpretado por Billy Burke, se volta para o corpo e faz outra constatação de vulto em “Um Crime de Mestre”.
Da mesma forma que em “As Duas Faces de um Crime” (1996), outra joia do suspense na conta de Gregory Hoblit, um profissional do direito doido para mostrar serviço é encarregado do caso, com a diferença de que, aqui, é para acusar. Jovem, aplicado e, o principal, ambicioso, William Beachum, como o tenente Nunally, logo se vê cercado pela astúcia diabólica de Crawford, o que as expressões faciais acuradas de Ryan Gosling deixam evidente. Hopkins e Gosling batem uma bola redonda, em que o veterano sempre faz o passe certo para seu parceiro de cena, mas acaba marcando ele mesmo o gol. O antagonista apanha o promotor na armadilha banal que lhe prepara sem nenhuma dificuldade, sem dúvida ajudado pela arrogância ingênua de Beachum, que o faz menoscabar a genialidade de Crawford e permite que seja enganado pela própria testemunha que arrolara (o segundo plot twist do enredo), o que arruína seus planos de dar uma guinada na carreira e ir trabalhar para a Wooton Sims, um dos escritórios de advocacia mais prestigiados do país, subordinado a Nikki Gardner — e Beachum acaba mantendo com a personagem de Rosamund Pike um romance moldado pelo pragmatismo de dois tubarões. A despeito de perder também o emprego na Promotoria, ele se resolve por seguir no caso, dispensando os conselhos de Gardner e Joe Labruto, seu superior no serviço público, papel de David Strathairn. É precisamente essa obstinação, tão presente nos anti-heróis — e especialmente nos anti-heróis dos filmes noir — que o redime de todos os enganos anteriores e lhe abre uma brecha para, afinal, incriminar Theodore Crawford, momento em que o jogo recomeça e outro filme viria a propósito.
Se fosse preciso eleger um só trunfo em “Um Crime de Mestre”, este seria, inexoravelmente, a parceria de Anthony Hopkins — ainda cheio de lenha para queimar, como se comprova em “Meu Pai” (2020), de Florian Zeller — e Ryan Gosling, a cada ano mais maduro como artista. A história apenas ornamenta os dois, e por essa razão o filme de Gregory Hoblit vira, hoje se pode dizê-lo, um clássico. Não muito conhecido, uma triste verdade, mas um clássico.