Saiu finalmente em 2021 o tão aguardado filme “A Mão de Deus”, do diretor italiano Paolo Sorrentino, já no catálogo da Netflix. É mais uma obra com as obsessões do cineasta em torno da memória, afetos, banalidade da vida moderna e, evidentemente, a paixão pelo futebol. Assim como em “Juventude” (2015), a figura do jogador Maradona aparece no centro da tela, assume uma aura sagrada e é um dos eixos das variadas tramas criadas por Sorrentino — um dos últimos realizadores com pretensões autorais de artista.
“A Mão de Deus” tem a narrativa clássica de um romance de formação, uma educação sentimental ou um retrato do artista quando jovem. Boa parte das histórias contadas no filme se baseia nas experiências do próprio Sorrentino, ao longo de sua adolescência nos anos 1980 na cidade de Nápoles (Itália). Segundo o diretor, nada como um napolitano para mentir tanto e assim criar suas memórias pessoais. O jovem Paolo está encarnado no personagem Fabietto (interpretado por Filippo Scotti).
As tramas do filme são costuradas em torno da vida dos pais de Fabietto (feitos por Toni Servillo e Teresa Saponangelo) e, no plano social, da ansiedade com a ida de Maradona para o então pequeno time do Napoli. O aprendizado de Fabietto vai levá-lo ainda ao desejo sexual pela tia Patrizia (Luisa Ranieri) e à paixão pelo cinema. Os personagens andam por uma Nápoles colorida, quente e fanática pelo ídolo Maradona. Uma cidade celebrada com afeto e dor nos livros de Elena Ferrante.
Em relativo equilíbrio, o universo de Fabietto desmorona com o acidente fatal de seus pais, algo que ocorreu realmente com o pai e a mãe de Sorrentino. No filme e na vida, o protagonista ó não morreu porque não viajou com a família e preferiu assistir a mais um espetáculo de Maradona no Napoli. Como diz um personagem, a “mão de deus” do gênio do futebol tirou o rapaz do local do acidente e fez aquele famoso gol na partida da Argentina contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 1986.
Beleza perdida
É possível ver uma linha de continuidade de “A Mão de Deus” com dois outros filmes que colocaram Sorrentino no circuito mundial do cinema. Estamos falando de “A Grande Beleza” (2013, vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira) e o já citado “Juventude”. Outros trabalhos são importantes, como a série sarcástica “O jovem papa”, da HBO, que imagina a escolha de um papa norte-americano feito pelo ator Jude Law para mudar os rumos de Vaticano. Mas os dois filmes são emblemáticos.
“A Grande Beleza” tem nas cenas iniciais uma festa de arromba. O personagem Jep Gambardella (interpretado por Toni Servillo, o pai de Fabietto em “A Mão de Deus”) comemora o aniversário de 65 anos da idade no terraço de um apartamento na Piazza del Popolo, um dos lugares mais descolados e históricos de Roma. É a celebração do “rei da mundanidade”. Jep encarna o sujeito cínico que escreveu um grande livro de sucesso (“O Aparato Humano”) e vive como jornalista de assuntos banais.
Sua vida se passa no meio de rodas de romanos ricos e educados. O apartamento dele tem a vista deslumbrante para o Coliseu, o templo do pão e circo, a decadência do Império Romano. Nada mais simbólico por analogia. A câmera vai acompanhando Jep em suas andanças pela cidade eterna, tal qual Fellini fez em “A Doce Vida” (1960). Nos dois casos, uma figura de alto espírito trafega pela mundanidade de Roma e sofre suas angústias diante da muita conversa fiada nos círculos de amigos.
Tudo vai bem, tudo vai mal, até o dia em que Jep recebe a notícia de que sua paixão de juventude havia morrido. O marido da mulher morta vai a Roma para contar a história. Começa aí o reencontro dele com a “grande beleza”, o sentido das coisas que podem se transformar em grande arte, como um livro ou um filme. A mais alta expressão, sugere Sorrentino, surge do desmoronamento do indivíduo e da sociedade (esta mergulhada nas insustentáveis levezas dos seres humanos).
Resgate dos afetos
No filme “Juventude”, Sorrentino construiu uma versão moderna da “Montanha mágica”, de Thomas Mann. Um spa ou um hotel de luxo na Suíça se torna um ponto de encontro dos mais variados personagens com suas patologias, sobretudo as emocionais. O local vira um grande palco teatral onde se encena a crise moderna. Corpos que vivem mais tempo e precisam de mais cuidados para se manter de pé. Do lado de fora, a loucura impera e invade aquele refúgio de pessoas que guardam traumas e afetos.
Um dos personagens é o ator Tree (feito por Paul Dano), que se veste de Hitler e faz uma performance para os hóspedes do hotel suíço onde se passa a história. Todos ficam em estado de choque. Tree conclui, ao final de tudo, que não compensa a insistência na encenação do horror, do qual o líder nazista é o símbolo mais completo. Para ele, vale mais a pena apostar no desejo dali em diante, no que está por vir. O futuro não pode ser mera repetição das enfermidades.
Sorrentino poderia ter insistido no horror (a paixão pela violência). Preferiu contar a história de dois amigos de quase 80 anos: Fred Ballinger (feito pelo Michael Caine) e Mick Boyle (Harvey Keitel). Nesse hotel, a doença não é a tuberculose do entreguerra que assombrou os personagens de Thomas Mann. A enfermidade é a apatia, a perda do desejo e, também, a cafonice do pop nas artes. Corpos idosos se misturam a outros corpos jovens — cuja figura máxima é a Miss Universo nua numa piscina.
Há o corpo deformado no hilário personagem do jogador Maradona — muitos depois do tempo mostrado em “A Mão de Deus”. Ao sair de uma piscina, ele exibe a enorme tatuagem de Karl Marx nas costas — uma afronta numa época tão anticomunista. Todo deformado pela obesidade, o ex-jogador do filme olha pela janela em uma cena e vê a alucinação da seleção argentina de futebol no gramado do hotel. A esposa perguntou sobre o que ele está pensando. Ele diz: “No futuro”.
Sorrentino construiu “Juventude” a partir da ideia de vazio, assim como fez em “A grande beleza”, o nada que nos embala no começo do século 21. Há futuro além do horror? Quem sabe o que está por vir sejam novos afetos, em um mundo sem medo. Não se trata do sonho de um mundo sem guerra ou em “paz perpétua” — que no fundo são as mesmas coisas: guerra para fazer paz. Seria um lugar onde o medo não seja o principal sentimento, tampouco um instrumento para controlar os outros.