Desde “Cultura Prussiana” (1908), de Mojżesz Towbin, sobre a revolta estudantil de Września em 1901, o cinema polonês apresenta à humanidade registros que, mesmo sem palavras, sempre têm alguma coisa a dizer. O filme havia sido censurado a mando do czar russo Nicolau 2° (1868-1918), e depois disso ninguém mais soube de seu paradeiro; considerado perdido até o ano 2000, “Cultura Prussiana” foi descoberto num arquivo em Paris pelo casal de pesquisadores acadêmicos polacos Małgorzata Hendrykowska e Marek Hendrykowski. A arte agradece.
Ao longo de mais de um século, a Polônia se firmou como um polo de sólida produção cinematográfica. Diretores a exemplo de Andrzej Wajda (1926-2016), Krzysztof Kieslowski (1941-1996) e Roman Polanski, tão distintos entre si quanto talentosos, foram responsáveis por filmes engajados, líricos, provocadores, que sempre contestavam o estabelecido de algum modo, e não raro eram tachados de impróprios, imorais, abjetos. Sua produção, de inegável relevância e sofisticação a toda prova, se estende ao longo de décadas, e por reunirem trabalhos de artistas que souberam traduzir sua visão invulgar do mundo em filmes clássicos, obrigatórios, acabaram por constituir a Escola Polonesa de Cinema, não por se parecerem, necessariamente, mas por terem nascido num país até hoje pouco conhecido do Leste Europeu.
Talvez “Polônia à Flor da Pele” não seja o exemplo preciso de como se constituiu o cinema polaco, mas decerto o é quanto a se conjecturar para onde pode ir. Aproveitando direitinho os ensinamentos da tal Escola Polonesa, Veronica Andersson, Filip Hillesland, Mateusz Motyka e Maciej Slesicki chutam o balde junto com seus personagens. Antologia de seis histórias variando sobre o mesmo assunto, a perda do controle diante de situações de estresse súbito e crônico, a produção de 2021 ainda se desdobra no decorrer de cem minutos sobre as diferentes formas de se reagir a circunstâncias de todo inesperadas, sem pejo de incomodar o espectador ao lhe sugerir uma pergunta, com toda a sutileza: e se fosse com você?
Recentemente, o diretor grego Yorgos Lanthimos lança mão de argumento semelhante em “O Lagosta” (2015), em que filosofa acerca da solidão, do amor, da necessidade ou não do casamento. O caráter nonsense, absurdo, das duas propostas tem exatamente essa intenção, ferir as concepções mais básicas de quem assiste, tornando o público cúmplice de toda a barbárie que possa derivar do cenário que se avulta aos poucos. Há os que vibram quando um pai num estado particularmente delicado e que percebe o sequestro da filha pequena num supermercado dá azo a uma carnificina para resgatá-la — e ainda pensam que poderia ter havido mais um pouco de sangue. Este é só um exemplo; em “Polônia à Flor da Pele” existem outras cinco histórias curtas, igualmente catárticas, que exortam a audiência a soltar as feras congeladas dentro de si por alguma razão, tanto pior em tempos obscuros, de incertezas ainda maiores sobre cenários já pouco esperançosos. É, no mínimo, um bom pretexto quanto a explorar nossos círculos menos evidentes.
Os seis curtas da coletânea — cinco de pouco mais de quinze minutos, à exceção do quinto, com mais de meia hora — pintam um quadro vívido de tipos humanos os mais heterodoxos. Além do pai que evita o rapto da filha, há o inspetor de polícia meio desiludido com a carreira (e indignado com as barbeiragens que presencia no trânsito diuturnamente); os empresários às voltas com uma inspeção surpresa da Polícia Federal; um político que vira curador de uma exposição que degringola em tragédia; homens que se casam com mulheres infiéis; e o casal de senhorios que acaba por sucumbir à loucura na ânsia de expulsar a inquilina inadimplente cheia de transtornos psiquiátricos, essa, sem dúvida, a melhor trama, justamente por misturar do jeito mais displicente conceitos muito bem delineados e estáticos em outras produções do gênero. Aqui, vilania e bom-mocismo vão para a cama sem qualquer cerimônia, sempre importando a situação em si e não possíveis elucubrações sobre o porquê de cada personagem ser o que é. A propósito, eles sequer têm nome.
Minimalista, direto, desaforado e revelador, “Polônia à Flor da Pele” subverte gêneros, clichês e padrões de comportamento a fim de nos jogar na cara nossa porção hipócrita, que cada um sabe muito bem por quanto é capaz de se estender e onde costuma se ocultar, para que viver torne-se um pouco menos selvagem. Os protagonistas das seis narrativas do filme de Veronica Andersson, Filip Hillesland, Mateusz Motyka e Maciej Slesicki, contudo, não estão interessados nisso. Já atingiram o limite no que diz respeito a mínima forma de tolerância, e esse perigo nos espreita a todos, na Polônia ou aqui.