A poesia é possivelmente a menos popular das formas de escrita e leitura na atualidade. Em sentido contrário, a prosa de ficção inunda as livrarias e os estudos literários. Por isso, é perceptível o isolamento de grandes poetas em relação ao público. Eles e elas escrevem para nichos específicos, ainda que haja no país milhares de autores de fim de semana com suas autopublicações de poemas. Nesse contexto, tem sido surpreendente a repercussão do livro “Risque Esta Página” (2021), de Ana Martins Marques.
A autora tem levado a poesia para um público mais amplo, graças à qualidade de sua escrita e ao respaldo de uma grande editora (a Companhia das Letras). O resultado são as matérias na imprensa, as citações nas listas de melhores do ano e os comentários entre amigos que citam a escritora como aquele bom segredo, contado somente a quem é de confiança e sabe apreciar coisas boas. Fenômeno parecido ao que ocorre com a poeta Angélica Freitas no livro “Canções para Atormentar” (2020).
O atrativo de Ana Martins está na fuga em relação aos modelos atuais de poesia, vigentes nas últimas décadas. Há, por exemplo, os autores brasileiros pop, que mantêm os cacoetes dos poetas concretistas, flertam com slogans da publicidade e não resistem aos apelos da canção popular. Ocorre um diálogo, digamos, barateado com o público, como se vê na chamada poesia de Instagram. Contra isso, alguns poetas reagem mal com uma escrita que imita estilos antiquados e acabam sendo impenetráveis na leitura.
Um certo equilíbrio entre comunicação instantânea e rigor estético aparece nos herdeiros e herdeiras de Ana Cristina César (1952-1983). Desconfio que ela vem ocupando na poesia um lugar análogo ao que Clarice Lispector tem na prosa de ficção. Um modelo a ser seguido por autores e autoras mais jovens. E nessa busca por referências do passado e na construção de uma escrita própria, Ana Martins Marques se diferencia dos demais poetas a cada livro que publica, desde “A Voz Submarina” (2009).
O livro “Risque Esta Palavra” está dividido em quatro seções. É possível ver as três primeiras partes (“A porta de saída”, “Postais de alguma parte” e “Noções de linguística) como eixos temáticos que levam ao ponto culminante em “Parar de fumar”. Parece que os poemas tratam de questões de vários “eu”, do mundo e das formas de escrita para, no final das contas, abordar um ato cotidiano e singelo (no caso, fumar um cigarro). Impressiona que ela retire alta poesia de uma coisa tão corriqueira.
A primeira seção (“A porta da saída”) traz um conhecido poema da autora (“História”, escrito em 2016). Os versos constroem uma biografia (“Tenho 39 anos/ Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos/ Meus seios têm cerca de 12 anos a menos”) e se expandem para questões do restante do mundo (“troco com meu vizinho/ palavras de cerca de 800 anos/ e piso sem querer numa poça/ com 2 horas de história”). A voz do poema mostra plena consciência do tempo que vai e vem.
Em outros versos da primeira parte, surge o tema da infância em palavras simples e de forte introspecção para mostrar a passagem do tempo (“de minha parte matei uma criança:/ uma menina morreu em mim/ por onde vou carrego/ seu cadáver”). A morte é tema recorrente e aparece ainda em “Finados” e num belíssimo poema sem título (“este ano você não veio/ justo no primeiro ano de sua morte/ você não deveria faltar// estamos todos reunidos em torno/ da fogueira do seu nome”).
O poema “Quatro pedras” expõe os rastros da influência de Carlos Drummond de Andrade em sua escrita: “No meio do caminho/ a falta da pedra/ (minerada):/ oco/ na paisagem que/ o olho/ fatigado/ (como a um cisco)/ não esquece”. Ressalte-se a presença da “falta” drummondiana. As epígrafes mostram as referências tanto de poetas, como de ficcionistas. São citados na primeira parte W.G. Sebald, Manuel Bandeira, Giuseppe Ungaretti e Philip Larkin, usados para desdobramentos nos poemas da autora.
Na segunda seção (“Postais de parte alguma”), é o mundo mais amplo geograficamente que se descortina. O poema “Minas à beira-mar” revisita a fixação dos mineiros pelo mar (Ana Martins é de Belo Horizonte). No livro, as viagens não são estímulo para felicidade do indivíduo e inspiram mais o olhar irônico, e quem sabe até melancólico: “Não te enganes: viajar é aborrecido/ Num ponto, ao menos, todos os lugares/ se parecem: neles já se passou/ algo terrível./ As viagens cansam/ e são tristes”.
A terceira parte (“Noções de linguística”) funciona como uma exposição de princípios sobre a escrita. Escrever é se misturar à vida, não havendo uma busca de isolamento do artista em relação ao mundo. Há que se encarar o mundo. Em “Silêncio”, Ana Martins aborda a sempre problemática questão do pode ou não ser dito por meio das palavras: “Toda fala nasce com a cicatriz do silêncio/ que foi quebrado// Não há palavra que não seja marcada pelo silêncio/ como camisas que secaram/ presas no varal”.
O poema “Prosa (II)” pode ser lido na forma de uma análise do escritor chileno Roberto Bolaño, que escrevia muita poesia, mas não as publicava. Só depois de morto saiu seu livro “A universidade desconhecida”, publicado este ano no Brasil. O poema de Ana Martins também é uma visão sobre o baixo valor monetário do fazer poético no mercado global das letras. “Há quem acredite/ que o autor trocou/ a miséria da poesia/ pela mercadoria da prosa”, diz Ana Martins.
Na República Mundial das Letras, ser ficcionista é mais rentável e popular do que ser poeta. A “prosa do mundo”, como disse o filósofo francês, que virou mais um produto na praça. Mas o Bolaño dos versos da autora não pode se livrar da escrita poética porque depende dela para fazer seus romances e contos: “Alguns talvez creiam/ que o prosador ofuscou o poeta/ fracassado// Ou o fracasso da poesia/ infiltrou-se em sua prosa/ como um mendigo/ numa festa/ um mergulhador/ num lago/ um cão/ num teatro?”.
O ponto culminante do livro está na última seção, “Parar de fumar”. Um hábito comum que foi se perdendo nos tempos de valorização de atitudes de saudáveis para o corpo – talvez nem tanto para a mente. Como dar sentido para um costume irracional que abrevia a vida de uma pessoa? Há muitos sentidos, e eles são o fundamento da exploração poética de Ana Martins: “O que fazer agora/ com as mãos/ cegas?// o cigarro é parente/ do lápis// eram, afinal, gestos para nada/ como na dança”.
O poema “Uma foto de Wislawa Szymborska” é um dos pontos altos do livro. A poeta polonesa ganhou o Prêmio Nobel de Literatura e fumou desbragadamente na cerimônia onde foi tirada a tal foto. Ana Martins faz uma “écfrase”, ou seja, a descrição detalhada de uma imagem por meio de palavras. “A cabeça jogada para trás/num vestido tabaco/ escuro/ em meio à multidão um pouco/ desfocada/ com os olhos abertos/ segurando um cigarro/ ela sopra a fumaça para cima// A afronta que é uma velha/ a fumar”.
As afrontas de Ana Martins são os poemas de “Risque Esta Palavra”. No meio de tanta palavra desgastada e surrada, ela busca a escrita simples/complexa e constrói uma obra do maior interesse — apontando para uma produção que vai durar muitos anos. Talvez a leitura desse livro ganhe novos contornos daqui um ano. Fiz uma primeira leitura, lenta como a que demanda a melhor poesia. Não se trata de mergulhar na prosa moderna para extrair máximas do mundo de uma vez só e da forma mais rápida possível.