Imagine se fosse possível ver as imagens em movimento de Picasso pintando Guernica ou de Rodin esculpindo um de suas versões do pensador. As filmagens mostrariam o dia a dia do artista e seus estudos preparatórios para a grande obra. Momentos únicos que só quem estava por perto poderia saber os detalhes. O documentário “The Beatles: Get Back”, lançado pelo Disney Plus, coloca o espectador justamente dentro do círculo criativo dos mestres supremos da música do século 20.
Em três episódios, o filme recupera imagens gravadas 50 anos atrás, em janeiro de 1969, e só agora editadas pelo diretor Peter Jackson (de “Senhor dos Anéis). Cada capítulo da série tem mais de duas horas de duração e mostra os Beatles ensaiando para o disco “Let It Be” e para um show para a televisão inglesa que nunca aconteceu. Os quatros integrantes ficaram dias e dias finalizando canções e discutindo qual seria o melhor local para uma apresentação — a última havia sido nos Estados Unidos em 1966.
As imagens são incríveis porque as câmeras ficaram ligadas para registrar absolutamente tudo. Aparece Paul McCartney no comando da criação dos Beatles — sem dúvida uma figura solar e com ideias saindo por todos os lados. Um John Lennon mágico, engraçado e leve, sempre com a esposa Yoko Ono ao lado. Quem não estava bem era o guitarrista George Harrison, que anunciou naqueles dias sua vontade de sair do grupo. Foi o começo do fim dos Beatles, e não há dúvida de que o grupo perdera sentido para eles.
Numa cena impressionante, a câmera focaliza o rosto de McCartney, que está com olhos cheios de lágrimas ao perceber que Harrison estava falando a sério sobre a saída. Um mundo pessoal estava em desmoronamento. Mas Paul segura visivelmente o choro. O que vem a seguir é a explosão de loucura, com ele, John e Yoko fazendo uma barulheira dos infernos no local dos ensaios. Era muita energia armazenada. O ponto de equilíbrio era o baterista Ringo Starr, sempre sorridente e conversando com todos.
As imagens de “Get Back” são belíssimas, restauradas em processos digitais de hoje. O resultado é um filme longo, exaustivo, que às vezes parece um ensaio para uma peça teatral que nunca vai ser encenada. Quatro personagens à procura de um autor ou de uma história biográfica.
O presente para quem assiste é ver Paul e John escolhendo palavras e sons para clássicos como “Let It Be” e “Get Back”. Eles se entendiam pelo olhar e não perdiam a chance de fazer piadas um com o outro. De novo: é como acompanhar Picasso em seus estudos para o quadro “Guernica”, expostos atualmente no Museu Reina Sofia em Madri. Aqueles dias renderam as músicas para os discos finais “Let It Be” e “Abbey Road” — este último traz a canção “Here comes the sun”, de George Harrison, ironicamente a mais ouvida dos Beatles no Spotify.
O ponto alto do filme acaba sendo o show, a última apresentação ao vivo dos Beatles, no telhado de um prédio no centro de Londres. Uma imagem que muitos já viram. O que ninguém tinha visto ainda eram eles conversando sem parar, rindo, e já apontando para o que queriam fazer da vida nos anos seguintes.