Apesar das muitas pedras no caminho, 2021 foi um ano profícuo para a literatura nacional. Quem se atreveu a vencer as barreiras do caos e levou adiante a empreitada de escrever em tempos hostis — talvez por isso mesmo tão necessária — conseguiu o que queria: a atenção das editoras, as palavras de repúdio ou louvor dos críticos e, com alguma sorte, a admiração do público.
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. O pensamento de Heidegger assinala as muitas descobertas que fazemos ao longo da vida, uma cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória. A esse propósito, a irrequietude do homem frente ao passar do tempo, incansável, inclemente, cruel, fomenta nele a justamente a premência de não desperdiçar oportunidades. Em identificando possíveis margens para arrependimento e correção de uma conduta qualquer, o homem deve sem hesitação vencer a correnteza e salvar-se. E quem melhor que a arte para salvar a humanidade?
Falando de médicos de crianças que as odeiam, caso de “A Pediatra”, de Andréa Del Fuego, ou uma mulher de classe média e com emprego numa emissora de televisão estuprada em plena luz do dia na dita Cidade Maravilhosa, o enredo de “Vista Chinesa”, de Tatiana Salem Levy, os escritores do Brasil se mostram inventivos à toda prova, e cumprem aqueles quesitos mencionados acima. Nossa pesquisa foi realizada com assinantes da newsletter, por meio de um questionário, e colaboradores, que poderiam indicar entre 1 e 10 livros de autores diferentes e publicados (ou republicados com edições ampliadas) a partir do dia 1º de janeiro de 2021. Trezentos e sete participantes, de 26 Estados e do Distrito Federal, responderam à enquete.
Petardo de cinismo contra a hipocrisia de uma sociedade que nunca enxergou o martírio óbvio de ser mãe — até que ela própria se vê estranhamente capturada pelo instinto maternal de uma forma nada comum —, em “A Pediatra”, de Andréa Del Fuego, lançado pela Companhia das Letras, Cecília é tudo o que não espera de um médico na sua especialidade: detesta crianças, não se compadece da angústia de pais e mães (principalmente mães) que se desesperam se o pequerrucho não faz um cocô bonito ou se bebe xampu e acha que parto tem de ser com hora marcada. Andréa Del Fuego, 46 anos, codinome de Andréa Fátima dos Santos, traça em “A Pediatra” o perfil de tantas mulheres e homens de branco, que se casam com a medicina por mera conveniência, e em algum momento são obrigados a lidar com a frustração, com o ofício e com a própria vida.
Depois de um autoexílio de dezesseis anos, ao longo dos quais se refugiou escrevendo para séries e filmes, Marçal Aquino volta à carga em “Baixo Esplendor” (Companhia das Letras), uma narrativa que destoa da trajetória de romances psicológicos que marcou a carreira do autor. O detetive Miguel fica perturbado com a chegada de Nádia em sua vida, uma mulher que lhe desperta sensações que ele não conhecia. Irmã do homem que está investigando, Nádia se constitui para o protagonista um grande conflito existencial, mas o policial está disposto a correr o risco, misturando na mesma trama elementos de suspense e da literatura erótica.
A arquiteta Júlia, personagem central do livro da autora Tatiana Salem Levy, o recém-lançado “Vista Chinesa”, tece um painel acerca da a pressão social que envolve a mulher, que deve ser uma profissional melhor que os homens, nunca fracasse, nunca sinta medo, nunca se sinta ultrajada e nunca se envergonhe, mesmo se vítima de uma das mais abjetas violências de que alguém pode ser vítima. Ao resolver falar do estupro da amiga Joana Jabace, diretora de TV da Rede Globo, durante uma corrida próximo à Vista Chinesa, um dos lugares mais procurados por turistas no Rio, a romancista desvela um dos maiores tabus da sociedade contemporânea até hoje, para o qual jamais surgem soluções eficientes.
Duílio, Rangel, Hélio Pires e Tide se envolveram num crime quando adolescentes e ainda hoje se sentem ameaçados pela mínima possibilidade de que tudo venha à tona, meio século depois. A inconsequência da juventude continua a reverberar entre eles transcorridos cinquenta anos, e eles se veem obrigados a reviver os tempos de bebedeira no Parque da Cidade e passeios despretensiosos ao longo da W3 Sul. Em “Os Planos”, Carlos Marcelo, ex-editor-chefe do jornal “Correio Braziliense”, hoje no mesmo cargo no “Estado de Minas”, põe lado a lado memórias afetivas de quatro sessentões e os meandros da corrupção nacional que infesta a capital da República desde sempre, fazendo alusões interessantes a empreitadas contemporâneas, de todo inovadoras no combate à devassidão no trato com o patrimônio nacional, como a Operação Lava-Jato, que mobilizou a Justiça, empolgou a opinião pública e apavorou políticos — por essa razão já providencialmente desmontada. O romance de Carlos Marcelo mostra que nunca esteve tão vívida a atmosfera do faroeste caboclo enunciado por Renato Russo (1960-1996), mencionado por alto na trama, como o “Renatinho da Cultura (Inglesa)”, por ter dado aulas de inglês na instituição.
Daniel Galera, já conhecido da crítica por “Barba Ensopada de Sangue” (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, eleva o espírito do leitor — mas também o rebaixa quando quer — ao falar de expectativas, sucessos e fracassos, individuais e da civilização. Em “O Deus das Avencas”, feito de três histórias (O deus das avencas, que abre o livro, Tóquio e Begônia), Galera mistura política, a relação dicotômica entre meio ambiente e tecnologia e o cenário pós-apocalíptico em que a humanidade é obrigada a viver, uma vez que ela mesma acabou com o planeta, e as transformações a que deve se sujeitar. Cheio de idiossincrasias pessimistas, quiçá medonhas, “O Deus das Avencas” se destaca por seu humanismo incorrigível, ainda que não se decida sobre se o homem tem jeito.
O cerrado é muito menos glamouroso que a caatinga, celebrada em autores da estatura de Graciliano Ramos (1892-1953) e Euclides da Cunha (1866-1909), bem como o Nordeste é muito mais conhecido que a região central do Brasil, cujo único retrato de fôlego continua a ser “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa (1908-1967), publicado pela Livraria José Olympio Editora em 1956. Seguindo pela picada aberta por Rosa, a brasiliense Paulliny Tort também descortina a alma do homem do coração do coração da América do Sul, em doze histórias passadas em Buriti Pequeno, cidade fictícia perdida em algum lugar do estado de Goiás. O patriarcalismo em O cabelo das almas; a relação predatória do grande produtor rural para com o segundo maior bioma do subcontinente — que, a duras penas, resiste e continua a ocupar mais de dois milhões de quilômetros quadrados, mais de um quinto do território nacional —; o sincretismo religioso, modalidade de culto herdada dos escravizados africanos praticada por Dita, a personagem central de “O mal no fundo do mar”. Por meio de uma prosa cheia de ritmo, mas que fala baixo, como o matuto das savanas brasileiras, Tort pinta os encantos e as mazelas de uma terra desconhecida de seu povo. Como o próprio Brasil.
Vale a pena sacrificar uma amizade de 12 mil anos só por causa de agonias que, por mais aterradoras, sempre passam? O escritor paulistano Marcelo Mirisola, um dos maiores nomes da literatura brasileira dos anos 1990, lança esta e outras afrontas em “A Fé que Perdi nos Cães”, seu 21º livro. Dono de uma prosa que põe o dedo nas tantas feridas do homem sem medo de incomodar, satírica e direta, Mirisola compila textos sob a forma de crônicas e contos até então inéditos, todos, em maior ou menor proporção, relacionados ao desalento do homem, um bicho que precisa ver para crer, mas que, ao mesmo tempo, está quase de olhos e espírito fechados.
Juliano Garcia Pessanha, filósofo de formação, herdeiro da teoria crítica da Escola de Frankfurt, contempla o advento da terceira década do terceiro milênio atônito com o predomínio do discurso fatalista, que nao propõe nada, só aponta erros, queima pontes, acentua diferenças e segrega cada vez mais, insensível às múltiplas realidades sociais. Avesso a pressupostos que se refiram à necessidade de fuga do mundo, Pessanha defende que os problemas encontram-se na realidade, e é na realidade que devem ser solucionados. De acordo com o autor, um bom número de estudos críticos que tomaram corpo ao longo do século 20, que visavam a criar uma arte que propusesse ambientes paralelos ao real, são mero delírio. Daí a importância da filosofia, da estética e da teoria crítica para se transformar o que pode ser mudado.
Chico Buarque parece cada vez menos inclinado a seguir na carreira que o consagrou e investe na literatura — e as editoras, por seu turno, investem em suas ambições. Em 2021, menos de dois anos do lançamento de seu último romance, “Essa Gente”, o autor está com livro novo na praça. “Anos de Chumbo e Outros Contos”, agora uma coletânea de histórias curtas, marca o debute de Chico Buarque nessa modalidade literária. A Companhia das Letras, casa que detém os direitos autorais do músico-escritor, aproveitou a ocasião e num golpe de marketing certeiro, relançou “Estorvo” (1991), primeiro trabalho de Chico em literatura, uma edição especial pelos trinta anos do romance, com comentários de Roberto Schwarz, Sérgio Sant’Anna, Marisa Lajolo e Augusto Massi. “Anos de Chumbo” se pauta por personagens e motes que não se relacionam uns com os outros, compondo um trabalho plural, de um escritor a caminho da maturidade artística. Há a moça que vive com o tio, a história do artista sem lugar no mundo, a mendiga desprezada, andanças por Copacabana e a tietagem a Clarice Lispector, quiçá a primeira mulher de letras com quem o autor manteve convívio mais próximo.
Professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Maria Esther Maciel faz poesia amalgamando biologia e ficção. Nas páginas que abrem sua “Pequena Enciclopédia de Seres Comuns”, Maciel dedica o livro a Zenóbia, zoóloga fictícia amante da botânica, alter ego da própria autora. Para este trabalho, a professora escolheu 76 verbetes sobre os quais discorrer: animais, plantas, flores e pessoas. Entre os mais populares, a maria-fedida, inseto que excreta um líquido malcheiroso quando ameaçado, e o joão-cachaça, peixe carnívoro encontrado no Nordeste, cujo nome recebe uma explicação curiosa na pena de Maciel.