O filme mais brutal, desorientador e adorável do catálogo da Netflix

O filme mais brutal, desorientador e adorável do catálogo da Netflix

Todos estamos sujeitos às intempéries da vida. Em “Waves” (2019), o diretor Trey Edward Shults mostra que viver não se resume apenas a seguir a maré, mas observar o movimento do oceano, a fim de prever algum imprevisto mais grave. E eles, cedo ou tarde, acabam acontecendo. Shults já havia dito do que é capaz em outros dois filmes de rara beleza, e tem se especializado em escrutinar as chagas da alma humana, uma teia tão bem urdida que a menor tensão de um lado pode provocar um maremoto de consequências devastadoras do outro. Assim como em “Krisha” (2015) e “Ao Cair da Noite” (2017), pode-se contar em “Waves” com um estudo delicado das relações interpessoais, sempre à mercê de desajustes, uma vez que cada homem é um universo, os três trabalhos grandiloquentes e sólidos de um realizador ousado. Como se de dois em dois anos a compreensão de Shults acerca das grandes questões da existência se expandisse mais, em 2019 o diretor entrega um filme muito mais denso que a maioria dos dramas de família lançados às pencas todos os anos, e que acaba por se tornar a história de redenção de um personagem, depois de descer a seu inferno particular, amparado por outra. Onda que bate lá inunda cá.

O início de “Waves” é suave. Em manobras circulares com a câmera, um expediente simples, mas cenicamente muito eficaz, vê-se Tyler, vivido por Kelvin Harrison Jr., dirigindo por uma rodovia da Flórida. Ao seu lado, Alexis, de Alexa Demie, a namorada com quem canta alto e troca alguns beijos sem descuidar do volante. Pouco antes, a fotografia de Drew Daniels destaca a silhueta de uma menina andando de bicicleta contra um sol de meio de tarde, um efeito igualmente simples, mas deslumbrante: ela é Emily, a irmã de Tyler interpretada por Taylor Russell. O núcleo de personagens centrais é completado por Catherine, papel de Renée Elise Goldsberry, a madrasta empática, e Ronald, de Sterling K. Brown, o pai austero, abusivo, mas irretocável ao ressaltar que garotos negros são proibidos de errar — especialmente os que, a exemplo de Tyler, estão indo cada vez mais longe —, sob o risco de cederem seu lugar aos brancos. Começam a se desenhar alguns dos conflitos que formam “Waves”.

Se há uma coisa a se frisar de cara no longa é a inovação argumentativa. Diretores como Trey Edward Shults, do mesmo time de Jordan Peele, de Nós (2019), e Monstro (2018) — também protagonizado por Harrison Jr. —, dirigido por Anthony Mandler, tem encabeçado, de maneira voluntária ou não, uma iniciativa louvável: a de retratar famílias afro-americanas muito diferentes do que o senso comum fez questão de cristalizar no inconsciente coletivo. Nos três casos, as produções são lideradas por atores negros, que compõem famílias de classe média alta, educação formal de primeira e, sobretudo, refinados. Tyler é o garoto perfeito: aluno acima da média num colégio de elite, começa a trilhar um caminho de sucesso no wrestling, uma modalidade de luta de contato, ao passo que tem um namoro saudável e ainda encontra tempo para aprender piano. Desenvolve tantas habilidades não sem alguma pressão, claro, principalmente do pai, que quer que o rapaz entenda desde logo que a vida é dura. É aí que os problemas começam de fato.

O personagem de Harrison Jr. é diagnosticado com uma lesão severa no ombro, que se não tratada de imediato, cirurgicamente, pode comprometer sua mobilidade de maneira irreversível. Tyler não aceita o conselho do médico, até porque está no meio da temporada de competições, e a depender de quanto tempo precisasse para se recuperar, poderia ser reprovado no último ano do ensino médio e tampouco ir para a faculdade. Seus planos vão fazendo água, um a um, e como um problema puxa o outro, ele começa, por desespero, a se automedicar com analgésicos potentes, até que se vicia. Um outro impasse, relacionado a Alexis, o lança no precipício que constitui a reviravolta fundamental de “Waves”, quando a trama se volta para a apreensão da história do ponto de vista de Emily.

O roteiro cheio de nuances, com um começo totalmente ensolarado, mas que vira uma tempestade furiosa menos de uma hora depois, só se sustenta se amparado por atores de musculatura rígida — e não me refiro aos treinos pesados a que Harrison Jr. e Brown se dedicam em cena. O intérprete de Tyler já vem se provando um ator de supino talento, cuja capacidade de girar a chave e mudar da euforia para um estado de melancolia aterradora impressiona, mas o grande chamariz do filme atende por um nome de mulher. Taylor Russell é emoção pura; sua atuação, basicamente intuitiva, contrabalança o aspecto muitas vezes excessivamente cerebral de Shults, sem se importar em soar piegas: ela apenas sente. Ninguém poderia imaginar que daquela moça, aparentemente tão frágil (e apagada no primeiro ato de “Waves”) fosse irromper o furacão dramático que bota os colegas no bolso — e o público na lona. Dando vida a um dos tipos mais replicados da história do cinema, o do pai que deseja realizar no filho seus sonhos frustrados, Sterling K. Brown vai comendo pelas beiradas, e ao remover as tantas camadas do verniz do sujeito durão, insensível a qualquer choque, diz a que veio, deixando o arco dramático de Ronald livre da mínima aresta, tão machucado quanto os demais.

Da mesma forma que “Waves” tem uma grandeza própria, ainda que possa ser comparado a joias do quilate de “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016), de Barry Jenkins, pela forma como consegue equilibrar lirismo e uma natureza marginal, agressiva, violenta — e o fato de as duas histórias se passarem na Flórida contribui para o engano —, Trey Edward Shults constrói sua carreira sem precisar se escorar em ninguém, se esmerando não só no conteúdo como na forma, e a montagem do longa, por exemplo, além da já mencionada fotografia, é primorosa. Esse casamento da técnica, da beleza plástica, com o que pode haver de mais artisticamente primitivo é o que separa um filme de uma obra-prima.

Por mais que não entenda, Tyler é, sim, suscetível a erros — que no caso dele vêm sob a forma da vaidade sem medida, que logo degringola em excessos e psicopatia. O filme de Shults dá às voltas da vida uma aparência menos implacável, já que lhe concede uma segunda chance, mas deixa claro que doravante tudo será muito diferente. As ondas do existir sempre trazem uma porção de dor, mas levam-nas para o infinito do mar aberto. Basta que nos predisponhamos a tanto.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.