As coisas que John Lennon talvez dissesse a Jair Bolsonaro

As coisas que John Lennon talvez dissesse a Jair Bolsonaro

John Lennon foi morto a tiros no dia 8 de dezembro de 1980. Eu tinha 15 anos. Estava ouvindo tudo, absolutamente tudo o que provinha do repertório dos Beatles e dos seus integrantes após a desintegração da banda em 1970. Com a morte de Lennon, morria também a ingênua expectativa do séquito de fãs — do qual eu já fazia parte — de haver um reatamento dos Garotos de Liverpool, que já não eram tão garotos assim, diga-se de passagem.

Faz 41 anos que John foi assassinado. Ando me sentindo mais macambúzio do que o habitual para o mês de dezembro. Não me perguntem por quê. Têm muitos sentimentos que a gente sente e não sabe explicar. Já gostei mais da época natalina. Pode ser que a banzeira passa. Hoje, simplesmente, ligo o piloto automático, deixo a coisa fluir e tolero a data como se fosse uma espécie de comichão passageira. E eu que pensava que “comichão” fosse um substantivo masculino. Que escândalo. Vivendo e aprendendo. Ou não. Também já fui mais perdulário do que sou hoje, emprestando-me a papéis ridículos, como sair de um shopping carregado de sacolas de presentes por todos os lados, como se fosse “O Idiota do Ano”, de acordo com a “Revista Time”.

Não me gabo por ser um sujeito esquisito. Certamente, o problema da falta de sintonia entre mim e o natal não está no evento cristão em si, mas, na minha própria pessoa. Suponho que seja para mim um mau negócio deixar atrofiar aquele saudoso espírito natalino que quase sempre nos faz parecer melhores seres humanos do que na verdade somos. Acontece que ando exausto dos teatrinhos, das aparências. Acho que vou ficar velho antes do que imaginava, sabiam? Por favor, não esqueçam esse pobre diabo sob o sol escaldante do centro-oeste brasileiro.

Quando estive em Nova York, fui conhecer o Edifício Dakota, onde moravam John e Yoko na época do crime. Em tempo: a não ser pelo sushi estragado, não guardo o menor rancor pela japonesa no que tange à separação da banda. Definitivamente, a culpa não foi dela, mas, da vaidade dos Garotos. Não se toleravam já tinha um tempo. Era também o mês de dezembro e fazia um frio do capeta — como se nevasse no inferno. Apesar de eufóricos, os meus ossos imploravam pela volta imediata ao Brasil. Permaneci estático na frente do prédio. Parecia a Estátua da Liberdade, só que desnutrido e sem glamour. Era como se tivesse congelado. Talvez, tivesse congelado, sim, e nem me toquei. Como diria o cantor Belchior, estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol. Tentei caminhar até o ponto exato onde John tinha tombado com os tiros desferidos pelo insano Mark Chapman, mas, fui impedido por um homem grandalhão, um armário anglo-saxônico-de-portas-abertas que fazia a segurança no local.   

Faço questão de citar o nome do facínora que baleou John Lennon, para frisar que o boboca quatro-olhos — vou praticar bullying, sim! —, movido pela estupidez e pelo egoísmo, acabou por tolher a humanidade da companhia genial, irreverente e defeituosa — por que não — do criador e líder da maior banda de rock de todos os tempos. Acham um exagero? Fãs exageram. Eles quase sempre exageram. Alguns se convertem em escravos da própria idolatria, transmutando-se em fanáticos que nunca admitem os deslizes dos seus ídolos. Não é o meu caso, contudo. Sou um homem moderado. Irritantemente moderado. Devo ressaltar, aliás, que a maturidade fez crescer dentro de mim uma espécie de fã-clube de mim mesmo, se é que me entendem. “I’m just sitting here watching the wheels go round and round”.

Desde o assassinato de John, muitos fatos históricos relevantes já aconteceram no mundo. A queda do muro de Berlim. O acidente nuclear de Chernobyl. O acidente nuclear com o Césio-137 em Goiânia. A Guerra do Golfo. As manifestações da Primavera Árabe. O protesto chinês na Praça da Paz Celestial. A redemocratização do Brasil. A morte de Tancredo Neves. O fim da União Soviética. A eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América. A eleição da primeira mulher para a Presidência do Brasil. O ataque terrorista às Torres Gêmeas. O surgimento da internet. A criação do Facebook. O advento dos smartphones. A pandemia da Covid-19.

Nos últimos cinco anos, ressalte-se a ascensão meteórica de políticos radicais da extrema-direita-raivosa, em vários países do mundo, com destaque para figuras ignóbeis, impensáveis e semi-distópicas, como Donald Trump, Viktor Orbán e Jair Messias Bolsonaro. Não sei por onde essa gente andava, mas, o fato é que emergiu do seio social ultraconservador de forma orquestrada por mentores perniciosos do naipe de um Steve Bannon, por exemplo. Uma eclosão nociva, algo parecido com os “bichos escrotos” que os Titãs cantavam em meados dos anos 1980. Perdi tantos amigos por causa de política. Que sorte a minha.

John Lennon era talentoso, divertido, polêmico e, acima de tudo, cruel e casca-grossa em matéria de defender os seus pontos de vista. Sinto que, por causa da sua inteligência e da sua impetuosidade, faz uma enorme falta no debate político. Com certeza, ele não se calaria frente aos discursos perniciosos e medievais dessa trupe terrivelmente reacionária. Enquanto ouço, acabrunhado, como uma forma de tributo, as suas canções, escrevo este texto e fico a imaginar o que ele, se estivesse entre nós, diria dessa histriônica safra de líderes radicais que infesta os quatro cantos do planeta. Provavelmente, faria do seu peculiar sarcasmo e da sua poesia ácida, chibatas verbais, dedicando aos líderes nefastos versos rascantes como aqueles que escreveu em “Crippled inside”, uma de suas mais memoráveis composições, a qual parece resumir com precisão o que se passa na sórdida e obtusa mente dos populistas boçais.

“Você pode lustrar os sapatos e vestir um terno. Você pode pentear seu cabelo e parecer fofinho. Você pode esconder o seu rosto atrás de um sorriso. Uma coisa que você não consegue esconder é quando está aleijado por dentro. Você pode usar uma máscara e pintar o seu rosto. Você pode chamar a si mesmo de raça humana. Você pode usar um colarinho e uma gravata. Uma coisa que você não pode esconder é quando está aleijado por dentro. Você pode ir à igreja e cantar um hino. Você pode me julgar pela cor da minha pele. Você pode viver uma mentira até morrer. Uma coisa que você não pode esconder é quando está aleijado por dentro.”

Ai, que saudade que eu sinto. Como fazes falta ao mundo, Sir John Winston Lennon.

*Para o poeta Carlos Edu, beatlemaníaco de marca maior.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.