Impiedoso, sombrio e fascinante, filme da Netflix é uma odisseia manchada de sangue e lágrimas

Impiedoso, sombrio e fascinante, filme da Netflix é uma odisseia manchada de sangue e lágrimas

Park Hoon-jung é um especialista em desvendar a alma humana, à custa de muito sangue. A violência de seus filmes — excessiva para uns; imprescindível para outros — foi o método que encontrou a fim de promover o encontro de seus personagens consigo mesmos, um baile furioso, em que a morte tira a vida para dançar, observadas de muito perto pela honra. 

O caos pontua a obra de Park, como em “Eu Vi o Diabo” (2010), em que conta as desventuras de um policial que tem a noiva morta, captura o assassino, espanca-o e o solta em seguida, só para ter uma razão forte o bastante para não lhe permitir se entregar ao desalento. Como já fizera em “Novo Mundo” (2013), “Noite no Paraíso” acrescenta o elemento da máfia, sempre repleto das mais amplas possibilidades quanto a se expor algumas das questões que intrigam a humanidade desde o princípio dos tempos.

“Noite no Paraíso” reafirma o ponto forte de Park. Aqui, mais uma legião de gângsteres se enfrenta, no intuito de deixar claro quem deve dar as cartas no tráfico de armas na Coreia do Sul. “Novo Mundo” pode ter a sofisticação e a delicadeza de uma ópera de Bizet, mas o filme de 2020, malgrado tenha um mote parecido, é puro heavy metal. Bandidos se esmurram e se matam sem a menor cerimônia, tanto que o espectador muitas vezes há de se pegar refletindo sobre o porquê daquilo. O frenesi narrativo por que opta o diretor contrasta frontalmente com a placidez de produções a exemplo de Longa Jornada Noite Adentro (2018), do chinês Bi Gan, ou “Hana-Bi – Fogos de Artifício” (1997), dirigido pelo japonês Takeshi Kitano. A dor para Park Hoon-jung grita.

A simplicidade é uma conquista. Tudo o que “Noite no Paraíso” deseja é saber como um gângster esperto, ainda que sem muita experiência, vai se sair ao tentar combater adversários de uma facção que se acostumou com a hegemonia no submundo. Park incumbe Uhm Tae-goo dessa tarefa, uma escolha que logo se revela perfeita; seu Park Tae-goo é uma composição dosada de prepotência e ganância, num fundo de pureza que remete aos criminosos que, com a licença do trocadilho, roubam o coração do público, um clássico do cinema. Park Tae-goo está na mesma categoria de Ferry, personagem-título da produção da belga Cecilia Verheyden lançada em 2021, ou de Léon, protagonista de O Profissional (1994), levado à tela pelo francês Luc Besson.

A única pedra no caminho do personagem de Uhm Tae-goo em sua escalada para o topo do poder paralelo em Seul é justamente sua mania de se importar com os outros. A meia-irmã, doente, com quem mantém o relacionamento típico de duas pessoas que se amam, embora não tenham nada em comum, e a sobrinha, a única capaz de derreter o gelo de seu espírito, são executadas numa emboscada cujo plano dá tão certo que todos, Park Tae-goo inclusive, pensam que se tratara de um acidente; na verdade, o protagonista prefere acreditar nisso, mas sabe muito bem que as duas foram mortas por sua causa, por causa da vida que leva, em razão das escolhas que ele fez. Yang Do-soo, vivido por Park Ho-san, o convence de que Doh, mandachuva do Bukseong, a organização com que seu grupo disputa a liderança no mercado negro de armamentos, fora o responsável pela carnificina. A fim de levar a termo sua vingança, Park Tae-goo é despachado para Vladivostok, na fronteira russa com a Coreia do Norte, mas antes faz escala na ilha de Jeju, no extremo meridional da Coreia do Sul. Lá, se hospeda na casa de Kuto, personagem de Lee Ki-young, um velho contrabandista de armas. Lee tem uma sobrinha, Kim Jae-yeon, interpretada por Jeon Yeo-been, que da mesma forma que sua irmã, está à morte devido a um câncer. O destino é implacável.

O roteiro de Park Hoon-jung fica ainda mais saboroso ao explorar o anti-romance entre Park Tae-goo e Kim, fornecendo ao público o respiro necessário frente ao mar de sangue em que “Noite no Paraíso” já se tornou a essa altura da história. Um tanto linear em alguns momentos, a subtrama que liga os personagens passa a conduzir o enredo, na medida em que o (não) relacionamento dos dois faz vir à tona as tantas misérias de cada um. Patologicamente voltados para si mesmos, às voltas com seus problemas — problemas que, não raro, eles mesmos inventam —, os personagens de Uhm Tae-goo e Jeon Yeo-been nem percebem que a felicidade chega a lhes bater à porta algumas vezes. Mas eles estão ocupados demais nutrindo suas velhas mágoas.

O envolvimento estritamente platônico dos protagonistas, mote de certo modo até revolucionário, dada a ubiquidade do sexo por mais desnecessário que seja, não importa o contexto, é outra das chaves que o espectador é obrigado a virar se quiser entender a complexidade de “Noite no Paraíso”. Ao se defrontar com o maior dilema de sua vida de maldições, salvar uma mulher que, como ela mesma diz, vai morrer logo — e com quem nem chega a ir para a cama —, Park Tae-goo levanta a questão mais lírica do filme: antes morrer que matar. É dessa maneira, com bandidos decorosos e mocinhas que nem beijam — mas, reitero, com sangue aos cântaros —, que Park Hoon-jung faz seu cinema. Um cinema nada convencional, sem dúvida.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.