Dono de uma carreira invejável, o diretor Brad Anderson foi galgando seu lugar no badalado panteão dos cineastas que realizam seu grande filme até os quarenta anos de idade. Exatamente no ano em que completou quatro décadas de vida, 2004, legou ao cinema “O Operário”, em que um inacreditavelmente esquálido Christian Bale padecia na pele (e nos ossos) de um maquinista que acaba provocando um acidente grave com um colega de trabalho por não conseguir pegar no sono. Quinze anos depois, em 2019, Anderson, ainda que sem o mesmo sucesso da produção estrelada por Bale, surpreende ao conferir um toque muito pessoal a “Fratura”. Balançando as estruturas do suspense clássico, o diretor traz uma história aparentemente sem nexo, e tanto pior se se comparar a introdução e o desfecho em separado. Como um filme, por óbvio, não pode ser avaliado apenas pelo início e o encerramento, há que se prestar toda atenção no princípio para se entender o fim — e em “Fratura” mais ainda.
Meio a contragosto, Ray Monroe, vivido por Sam Worthington, leva a mulher, Joanne, interpretada por Lily Rabe, e a filha, Peri, de Lucy Capri, para os três passarem o feriado de Ação de Graças na casa dos sogros. Ray faz uma parada num posto de gasolina a fim de comprar um refrigerante, conhaque e pilhas para o brinquedo com que Peri se distrai ao longo da viagem, mas o que seria algo completamente banal, logo se converte num pesadelo. A loja de conveniência não aceita cartões de crédito e Ray compra apenas o essencial, o que não inclui as pilhas. Volta para o carro, abre a porta traseira, derrama o refrigerante no banco, e entre uma e outra imprecação, Peri salta. Num crescendo da atmosfera de total imprevisibilidade da trama, um cachorro aparece, o que apavora a menina, que vai arredando, até que Ray, tentando afastar o cão, atira uma pedra contra o bicho, que sai de fininho; mesmo assim, Peri se assusta e cai de uma altura considerável. Tentando salvá-la, Ray se joga em sua direção, e os dois baixam ao hospital.
Peri pode só ter quebrado o braço, como pode também estar com alguma hemorragia interna, mas se seu caso fosse mesmo tão grave, decerto teria morrido, graças à burocracia excessiva e aos protocolos inúteis observados pelo estabelecimento — em especial os que dizem respeito a como se vai pagar a conta, e o plano de saúde de Ray não é aceito ali —, cheio de funcionários que mal disfarçam a psicopatia por trás de seu uniformes, que não são capazes de se compadecer pelo sofrimento alheio, e talvez, no fundo, até gostem de assistir de camarote ao calvário daquelas pessoas. Quando finalmente é atendida, depois de uma eternidade, pelo simpático doutor Berthram, de Stephen Tobolowsky, Peri é encaminhada ao subsolo, a fim de realizar alguns exames. Ray volta ao saguão e a espera recomeça.
A partir de então, “Fratura” torna-se uma escalada de pânico, sob a forma do sumiço repentino e inexplicável de Peri e Joanne, argumento de que Robert Eggers se vale de maneira primorosa em A Bruxa (2015). Ninguém sabe delas, e a primeira ideia que assalta o espectador é sobre um possível complô contra Ray, suspeito de ter negligenciado a filha desde o instante em que pisara no hospital, até pela recepcionista. À medida que a história avança, surge uma nova perspectiva, ainda mais brutal: o personagem de Worthington teria entrado sozinho e já teria sido medicado e liberado, sem Peri, sem Joanne. Tem início a saga do protagonista para convencer as autoridades, chamadas a conter o distúrbio promovido por ele, de que o hospital mantém a filha e a mulher em cativeiro, talvez para serem sedadas e terem seus órgãos retirados e vendidos para pacientes que demandam um transplante.
O roteiro de Alan B. McElroy, autor de “Pânico na Floresta” (2003), dirigido por Rob Schmidt e logo desdobrado numa franquia poderosa, transforma o filme num pesadelo de Ray, e insuportavelmente trágico, uma vez que está acordado. Os corredores do hospital parecem se alongar um pouco mais a cada sequência, como se aquelas paredes alvas tivessem o condão de tragar uma pessoa, e de certo modo têm mesmo. O andamento da história fica comprometido por causa da insistência do personagem central em admitir o óbvio, uma realidade atroz demais para ele, a grande reviravolta da trama, a menos de oito minutos da linha de chegada. “Fratura” até lembra David Cronenberg, mas com espaços lastimavelmente vagos; os diálogos não primam pela originalidade, mas há respiros bem elaborados, pontuados na hora certa. Contudo, o que não se pode relevar mesmo são os arcos dramáticos que ficam pelo caminho, especialmente o de Joanne. Era fundamental uma sequência que destrinchasse o momento em que o tipo vivido por Lily Rabe começa a se perder do marido e por que ela passa a despertar nele os sentimentos que Ray manifesta impetuosamente, circunstância que degringola no que se vê quando da conclusão do longa.
A passagem que fecha “Fratura”, retrato de uma família que tenta se refazer, inutilmente, é decerto o ápice do filme, e, de lambuja, um dos momentos mais líricos da história do cinema recente. Impossível se dizer que este é um grande trabalho de Brad Anderson, mas “Fratura” entrega o que promete. Pensando bem, entrega até muito mais.