Dois estranhos unidos por um mistério sobre o qual nada sabem tentam suportar as agruras com que são obrigados a conviver até que consigam retomar suas vidas. Grande parte dos filmes de suspense já rodados poderia ser descrito assim; acontece que “Dois” (2021), da diretora espanhola Mar Targarona, tem algumas peculiaridades. Os dois estranhos, Sara e David, interpretados por Marina Gartell e Pablo Derqui, estão de fato unidos: foram cirurgicamente costurados por algum maníaco, talvez numa brincadeira satânica que lhe trouxesse algum gozo perverso. Depois, à medida que a história toma corpo, se vai saber que os protagonistas não são tão desconhecidos assim um para o outro.
Todos os detalhes do roteiro de Christian Molina, Cuca Canals, Daniel Padró e Mike Hostench foram pensados para incomodar. Sara e David estão trancados no que parece ser um quarto de motel — e essa é uma informação relevante —, não exatamente pequeno, mas ainda assim claustrofóbico, devido à baixa luminosidade e ao tom funesto das cortinas e do papel de parede, elementos cênicos que sobressaem, graças à fotografia melancólica empregada. Quando se dão conta do que se passou com eles, a agonia que se alastrava com método cede lugar a um desespero opressivo, que precisam controlar, a fim de que consigam preservar sua própria integridade física. Atividades banais, como se levantar ou aliviar a bexiga tornam-se um verdadeiro tormento, e ao constatar que foram mesmo envolvidos a contragosto num jogo sádico que testa sua resistência física e moral, o que resta claro ao se constatar, por exemplo, que o telefone verde de disco deixado no cômodo, que poderiam usar para pedir socorro, está mudo — mas toca o réquiem de Mozart quando acionado —, os dois têm de encontrar forças para conjecturar alguma maneira de dar um fim àquilo.
Malgrado todas essas adversidades, as suspeitas que Sara teima em levantar contra David não tornam as coisas mais fáceis. Há, no entanto, certas evidências que vêm à baila para que se resolva o mistério de “Dois”. Além do telefone enigmaticamente programado para tocar Mozart, todos os objetos em cena estão dispostos em pares, cercados por paredes adornadas por quadros de Francisco Goya. Depois de muito sacrifício, os personagens de Gartell e Derqui conseguem abrir a gaveta de um móvel e tiram de lá duas Bíblias. A primeira está marcada em Isaías 11:6-9, onde se lê que “o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao bode; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e uma criança os guiará”; da segunda, cai uma foto de mulher, Rita, duas possíveis revelações capazes de os ajudar a desvendar o enigma e, quiçá, ter cada qual seu corpo.
A menção ao texto do profeta Isaías é uma referência clara à necessidade da chegada de um novo tempo, sem as tantas mentiras que pautam as vidas de Sara e David. Complemento ao Apocalipse, de São João, as palavras de Isaías também remontam a um cenário escatológico, em que se especula como será o mundo depois de findo o tempo da mentira, ou seja, quando achar termo o reinado do homem, se abrirem as portas do Céu e transcorrer, enfim, o Juízo Final. O discurso religioso é um pano de fundo estimulante em “Dois”. Conspurcada pelo fanatismo de quem está por trás das sevícias aos protagonistas, a mensagem bíblica poderia ser apreendida como uma recomendação para eles, visto terem ambos pautado suas vidas pela mentira e pela concupiscência. Sara chega à conclusão de que seu castigo se deve ao adultério contra o marido, Mario, que por seu turno desenvolve uma monomania pelo rival, não sem motivo. No caso de David, esse fora o modo encontrado para fazê-lo abandonar a prostituição. Mario os teria unido visceralmente por serem um só, faunos diabólicos que espalham o pecado sobre a Terra.
Rita, a mulher da foto, é na verdade a mãe de gêmeos siameses, conforme se lê nos recortes de jornais pregados na parede. Segundo a matéria, Rita morrera durante o parto e o pai, esquizofrênico, tivera de criar os filhos sozinhos. Como se assiste no desfecho de “Dois”, não fora Mario quem cosera Sara e David, os gêmeos xifópagos do relato, separados depois de um procedimento delicado, que demandou horas de cirurgia. Numa tentativa de reparar o que julga um erro, uma vez que os protagonistas dissiparam suas vidas irremediavelmente, esse homem os colocara juntos outra vez, a fim de que assim, se emendassem. Mas a tentativa fracassa, duplamente: valendo-se de um abridor de cartas, ao longo de uma sequência espantosamente longa, e tanto pior porque muito bem enquadrada, Sara livra-se da sutura que a ligava a David, mas a hemorragia que se segue é perene. Em minutos, acaba por sucumbir, junto com o irmão, já abatido por um evento inesperado.
É como se os dois voltassem ao útero materno, agora separados, mas compondo um só organismo, para sempre, em eterno equilíbrio, aludindo à ideia de yin-yang da filosofia chinesa, explicitada numa arte que serve de logotipo do filme quando da subida dos créditos. Como se Mar Targarona nos dissesse que da vida ninguém escapa.