Baseado numa série de tevê e com Sandra Bullock liderando o elenco, “Imperdoável” é um emaranhado de histórias, uma mais triste que a outra, todas conduzindo a um mesmo caminho, guiadas pela mesma personagem.
Lançado em 10 de dezembro de 2021, o filme da diretora alemã Nora Fingscheidt começa mesclando imagens de flashback com registros atuais, em que se denota a batalha de uma mulher por recobrar sua própria vida. Ruth Slater, a protagonista vivida por Bullock, ganha a liberdade condicional depois de ter cumprido vinte anos de cadeia pelo assassinato do xerife, que invade a casa em que vive sozinha com a irmã Katherine, a Kate, de Aisling Franciosi, trinta anos mais nova, depois que o pai das duas, interpretado por Aaron Pearl, cometeu suicídio. O policial tinha uma ordem de despejo contra Ruth e Kate, por falta de pagamento das prestações do imóvel.
O filme toma o aspecto de saga ao acompanhar como se desenrola a história de Ruth fora da cadeia. Se a vida no cárcere não era exatamente fácil, em liberdade a personagem central de “Imperdoável” tem de arrostar novos desafios. O primeiro é se manter longe de encrenca, mesmo vivendo num pardieiro que aluga vagas para ex-detentas. Seu novo lar consiste num cubículo, que divide com outras três mulheres, além de um banheiro, compartilhado com todas as demais moradoras, cabendo-lhe dez minutos diários para tomar banho. Todas parecem saber o que fez, por mais que ela se feche em si mesma, como uma concha no fundo de um oceano de mágoas.
A roda do destino faz com que a vida dos homens rode, rode e muitas vezes acabe parando no mesmo lugar. Apesar das admoestações de Vincent Cross, o agente designado para supervisionar seu desempenho durante a soltura vivido por Rob Morgan, para que não mantivesse contato com pessoas de alguma maneira envolvidas no crime que cometera, há alguma coisa que impele Ruth para a desgraça que se abatera sobre sua vida duas décadas atrás. Ela acaba fazendo uma visita à casa em que morara com Kate, hoje habitada por Liz e John Ingram, papéis de Viola Davis e Vincent D’Onofrio. O mundo para a ex-presidiária se tornara um lugar do qual não consegue se sentir parte, exceção talvez àquela propriedade perdida no meio da zona rural de Seattle, no noroeste dos Estados Unidos. Ruth se despenca até lá e passa algum tempo, talvez horas, admirando aquele pedaço de um paraíso que se perdeu para sempre. Até ser notada por Liz, que pede ao marido para ver se descobre quem é a intrusa.
Os jornais já não se referem ao lugar como “a casa do homicídio”, e ninguém ali faz a menor ideia de quem seja Ruth Slater. Quando ela diz que passara boa parte de sua história no imóvel, Ingram a convida a entrar. É impossível fazer qualquer conjectura sobre o passado nada honroso de Ruth só por avaliar seu aspecto — por mais maltrapilha e desgrenhada que esteja —, mas John, advogado experiente, nota que a personagem de Bullock encerra um mistério. É justamente o tirocínio dele que os une, na medida em que o marido de Liz se comove com a desdita de Ruth e se propõe a ajudá-la. E é aí que “Imperdoável” decola.
O conflito entre Ruth e Liz, que a quer bem longe de sua casa e de sua família, é só uma pequena parte de todo o preconceito de que a protagonista é forçada a se desviar todo santo dia. Ruth está empenhada em mudar de vida — já manifestava esse desejo ainda na prisão, quando fez um curso profissionalizante de carpintaria, que lhe garante emprego numa obra assistencial. Não bastasse esse trabalho durante o dia, dá expediente destrinchando e embalando peixe num frigorífico, indicada por Cross, ao passo que tenta uma chance de rever a irmã, com a mediação de Ingram. Mas a vida para ela é madrasta, e parece que quanto mais se esforça para escapar do precipício, mais lhe falta o chão.
Fingscheidt e os roteiristas Peter Craig, Hillary Seitz e Courtenay Miles deixam para revelar na hora precisa, nem cedo nem tarde demais, o motivo por que Ruth deseja tanto esse reencontro. As sequências com trechos do passado da protagonista, em que detalhes do crime acabam por se esclarecer, vêm sob a forma de flashes instantâneos, que vão sugerindo uma maneira absolutamente nova de se supor em que circunstâncias o xerife fora assassinado. Tudo da maneira mais elegante que um filme com essa carga dramática consegue, o que, por sinal, o leva a um desfecho de todo inesperado, ainda que feliz. Até porque, como eu havia dito no princípio deste artigo, “Imperdoável” é um arrazoado de várias tramas paralelas que terminam por se encontrar em alguma esquina do infinito.
Sair vivinha da Silva depois do tiroteio dramatúrgico que é “Imperdoável” pode ser o passaporte de Sandra Bullock rumo a mais um Oscar. E esse é bem o gênero de filme que acaba dobrando a Academia, digam os críticos o que quiserem.