O filme B subestimado da Netflix que é um dos melhores lançamentos de 2021

O filme B subestimado da Netflix que é um dos melhores lançamentos de 2021

A primeira sequência de “Ferry” (2021) se vale de um flashback a fim de explicar que gênero de homem é o personagem-título do thriller holandês da diretora belga Cecilia Verhayden. Na tela, um garoto de dez anos se esconde apavorado do pai, alcoólatra e claramente violento. A irmã, pouco mais velha, também foge, e conta com um revólver. A mãe dos dois clama ao marido que não agrida a criança. O homem começa a bater na esposa. O menino se enfurece, toma a arma da irmã, corre em direção ao pai e mira nele.

O garoto em questão é justamente Ferry Bouman, um dos mais temidos gângsters da Holanda, vivido no longa-metragem por Frank Lammers. Ferry, como o introito deixa perceber, fora criado assim, da maneira mais displicente, por pais que decerto preferiam que ele sumisse. E é o que ele faz: deixa sua cidade natal, a provinciana Brabant, no sul da Holanda, e vai tentar a sorte na capital, a feérica e liberadíssima Amsterdã. Encontra uma oportunidade de ganhar dinheiro rápido e fácil servindo de faz-tudo de Ralph Brink, personagem de Huub Stapel, chefão da máfia nos Países Baixos. Ganha a confiança do mafioso, vai subindo na organização e entre os dois se estabelece uma grande amizade, profunda e sincera, calcada em valores como gratidão, da parte de Ferry, e afeto filial, para Brink. O agora braço direito do todo-poderoso do submundo é capaz de qualquer coisa pelo patrão, e essa lealdade cega é um dos elementos em sua personalidade débil que quase o perdem.

O roteiro de Nico Moolenaar e Bart Uytdenhouwen, autores de séries de televisão famosas na Bélgica, usa esse sentimento de fidelidade canina do protagonista para se aprofundar no dilema que surge no meio da trama. Verhayden, por seu turno, aproveita para adicionar, mediante muitos enquadramentos em primeiro plano — e mesmo em primeiríssimo plano —, imagens de seu personagem central, como se com esse expediente o ajudasse a remover um pouco do peso existencial que o aterra. Para Ferry, a única coisa que sobrara na vida foi ser capacho de um criminoso que não hesita em se livrar de quem quer que seja se contrariado. A primeira reviravolta do enredo, que acerta Brink, até então inabalável, em cheio, cospe o anti-herói de volta às suas origens, onde tem de se haver com velhos problemas, a exemplo da relação espinhosa com a irmã, Claudia, de Monic Hendrickx, feita basicamente apenas de insultos de parte a parte, e a paixão nada platônica por Daniëlle, interpretada por Elise Schaap, sem dúvida a melhor coisa em “Ferry”.

Esse romance improvável começa da forma mais despretensiosa e menos sedutora possível. Ao socorrer Daniëlle de um ex-namorado possessivo, com quem ainda se encontra, Ferry permite ao público conhecer uma faceta menos insossa de sua alma. Na verdade, é a moça quem parece de fato interessada — todas as aproximações entre os dois, até dado ponto dessa subtrama, se dão graças a segundas intenções do brutamontes, no intuito de cumprir a missão que Brink lhe confiara —, mas à medida que se conhecem melhor, Ferry se dá ao luxo de ao menos experimentar a sensação de gostar de uma mulher de verdade, com tudo o que pode haver de bom e de ruim nisso. E ele se enrosca no caso com Daniëlle muito mais do que gostaria (e do que seria prudente para alguém na sua, digamos, posição), o que o implica na maior cilada de sua vida de tantos infortúnios, como se o destino, o soberano de mocinhos e vilões, estivesse sempre à espreita, prontinho para lhe passar a perna. Ao não cumprir a ordem do chefe, poupando a companheira de um sofrimento para o qual não estaria preparada nunca — e dispensá-la com rudeza, até cruelmente, a fim de que ela nunca mais pensasse nele, e, se tivesse sorte, o odiasse —, Ferry se vê pela primeira vez diante de uma situação de perigo real para ele: enfrentar a ira de Ralph Brink, com quem acaba tendo um acerto de contas inesperado, que degringola num fim de que ele certamente preferiria ter se eximido.

A discussão da natureza trash de “Ferry”, tanto da história como da produção em si, vem à baila oportunamente, e ainda não se esclareceram muitas das questões referentes a esses detalhes de bastidores, nada desprezíveis. Foi um tiro n’água a decisão de Cecilia Verheyden quanto a ambientar o filme em 2006, quando se passa o longa. Parece que a única preocupação da diretora foi resgatar celulares antigos, a fim de que ninguém tivesse dúvidas de que o filme se distanciava em alguma medida do tempo presente, esquecendo por completo de fazer o mesmo quanto aos carros, além de não ter apagado os modernos arranha-céus da Amsterdã contemporânea na pós-produção. Dizem as más línguas que o desleixo técnico foi tamanho que a câmera chegara a enquadrar figurantes usando máscara, devido à pandemia de covid-19. Confesso que flagrei, na sequência em que Ferry e Daniëlle se reencontram, uma mulher passar com algo que lhe avolumava o rosto, mas era da cor da pele. E ainda que Verheyden ou a distribuidora do filme não precisem da minha ajuda, poderiam alegar que na Europa, na Ásia (na Ásia, especialmente) e em todo o mundo civilizado, o uso de máscaras sempre foi praxe.

Deslizes, não há como dizer o contrário, mas que não comprometem o todo. Comprovando a surrada máxima de que os brutos também amam, “Ferry” tem aquele gosto bom de fantasia, como se o amor tivesse mesmo o condão de transformar mesmo o sapo mais asqueroso num príncipe gentil, dado a delicadezas e sem medo de mudar de vida. O que seria do mundo sem os sapos apaixonados?

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.