Ganhador do Urso de Prata no Festival de Berlim, novo filme da Netflix é totalmente original, imprevisível e fascinante

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A convivência entre civis e militares nunca foi exatamente harmoniosa, em qualquer lugar do mundo. No Brasil, a longa jornada noite adentro da ditadura militar (1964-1985) fez recrudescer o medo e a ojeriza por agentes de segurança, policiais militares, sobretudo, decerto por ser esta a primeira instância do poder público com que o cidadão comum se defronta em casos de desarranjo social, seja em que medida se dê.

Na porção setentrional do continente americano, policiais também são obrigados a lidar com a desconfiança e o menoscabo da população. Nos Estados Unidos, desde os anos 1960, os primeiros executores da lei estão sujeitos a ouvir toda sorte de ofensas, sobretudo do estrato composto por indivíduos de até 29 anos, negros ou pardos e que ganham menos de mil dólares. Não tardou para que a cultura pop também capitalizasse a aversão gerada pela polícia, principalmente por meio do rap, chamando-a, quando do início das mobilizações por igualdade de direitos civis para afro-americanos, de “o calor”, em referência à temperatura das pistolas depois de apertado o gatilho, ou “a penugem”, esse eivado da mais inventiva galhofa ao aludir aos horrendos bigodes que certos tiras insistem em usar, ainda hoje. Os apelidos foram se modificando — “porcos”, “dedos nervosos”, “bastardos” —, mas o ódio é o mesmo, talvez um pouco menos disfarçado.

Dirigido pelo mexicano Alonso Ruizpalacios, “Um Filme de Policiais” (2021) continua essa espécie de tratado sobre as dificuldades da polícia em recobrar sua credibilidade em meio a salários defasados, sucateamento na formação dos cadetes, apagão tecnológico, invisibilidade social dos agentes. Ambientando sua história na Cidade do México, Ruizpalacios começa os trabalhos com a voz de María Teresa Hernández Cañas narrando uma parte de seu dia a dia na corporação. Conforme logo se fica sabendo, Teresa tem 34 anos e passara a integrar os quadros da polícia aos dezoito — há uma reviravolta sutil aqui, sobre a qual o diretor se estende com mais vagar no desfecho. Chamada a ajudar no parto de uma moradora da periferia da capital mexicana porque os vizinhos aguardavam o serviço de pronto atendimento há mais de duas horas, Teresa já vai se explicando, talvez para se eximir de alguma culpa caso as coisas saiam do controle: nunca tivera de fazer partos antes, até porque a Academia de Polícia não tem essas preocupações. O que lhe ocorre é telefonar para o marido e pedir para que ele chame os médicos. Funciona, mas não deveria ser assim.

A natureza de documentário de “Um Filme de Policiais” vai se desvanecendo pouco a pouco, à medida que surgem elementos essencialmente cinematográficos no roteiro de Ruizpalacios e David Gaitán. A trilha sonora se impõe com acordes de xilofone, apesar do que se apresenta não ser nada lúdico, uma ousadia artística louvável da dupla. Em falando em dupla, com a entrada em cena de José de Jesús Rodríguez Hernández, o Montoya, a trama até chega a ter a aura refrescante de uma história de amor entre policiais, um Bonnie e Clyde com sinal trocado, ainda que Teresa e Montoya não sejam nenhum baluarte à moralidade das forças policiais. Ao mesmo tempo que se descrevem como profissionais exemplares — que pulam de telhados, escalam prédios para desligar o gás, são derrubados da moto e, por evidente, perseguem bandidos — e esclarecem por que optaram pela carreira, principalmente por causa da influência de parentes policiais, aceitam suborno, com a maior naturalidade, como se o Estado, aqueles a quem se dedicam a proteger com a vida, se necessário, e a própria vida estivessem em dívida para com eles.

No meio da narrativa, quando um Montoya espantosamente desgrenhado e com a barba crescida surge na tela, é que se tem a real noção de que o filme é mesmo uma ficção, apesar de muito baseado em evidências reais. Raúl Briones, que dá vida ao policial, é secundado por Mónica del Carmen, a intérprete de Teresa, ao relatar impedimentos muito pessoais quanto a conferir verossimilhança ao trabalho. Briones, um anarquista empedernido, se diz obrigado a ter todas as reservas no diz a respeito à polícia, por tudo quanto presenciara em seu dedicado laboratório — para compor o personagem, se matriculara às escondidas na equipe de treinamento da polícia, bem como Del Carmen. Segundo Briones, os oficiais são formados como numa linha de montagem, e em menos de seis meses estão nas ruas, com uma pistola na mão, o que não deixa de ser um fator de grande instabilidade social no país. Cidades mexicanas como Acapulco, Juarez, Tijuana e Victoria, por exemplo, estão entre os vinte centros urbanos mais violentos do mundo.

Se existe algum respiro em “Um Filme de Policiais” é quando Teresa e Montoya falam do envolvimento amoroso surgido da convivência, forçada. Mas, pensando bem, deve ser uma tarefa para poucos conseguir empenhar toda a dedicação que a atividade na polícia exige, e ainda restar algum desvelo para o casamento. Os patrulheiros do amor, como eram chamados, não tiveram essa sorte. No inverno de 2019, María Teresa Hernández Cañas e José de Jesús Rodríguez Hernández, o Montoya, se desligaram da Polícia da Cidade do México.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.