Nos últimos dois anos, a Netflix lançou filmes que mostram o avesso do gênero clássico dos faroestes. É um sinal de transformação das narrativas que contam o mito fundador dos Estados Unidos, disseminado há quase cem anos pelo mundo inteiro. Recentemente, saíram “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, e “Vingança & Castigo”, de The Bullitts. Ano passado, havia sido “Relatos do Mundo”, de Paul Greengrass. E antes, a série “Godless” (2017) apresentou um velho Oeste repleto de minorias sociais e étnicas.
Os faroestes integram o repertório das “ficções de fundação” do país, para utilizar a expressão de Doris Sommer. Aqui falamos da nação branca, masculina e de origem europeia. São as mentiras e os mitos que passam de uma geração para outra, ajudando a construir algo chamado de “identidade nacional”. Desde o início, os filmes de Hollywood funcionaram como máquinas-narrativas. Chegado ao ponto, segundo Ella Shohat e Robert Stam, de os faroestes serem um quarto dos filmes norte-americanos de 1926 a 1967.
Com o espírito de desmancha prazeres, a dupla Shohat-Stam expõe o que está por trás dos faroestes. É possível assim entender melhor as novidades trazidas pelas produções da Netflix. Segundo eles, os caubóis e o imenso deserto a ser conquistado (eliminando os indígenas, é claro) compõem o clássico “imaginário imperialista” dos Estados Unidos. Enquanto os europeus barbarizavam na África e na Ásia, os americanos estabeleciam o terror internamente contra os povos autóctones e vizinhos mexicanos.
Não há filme de faroeste sem o mito da fronteira: as leis competitivas do darwinismo social (só os mais fortes vencem), a hierarquia de raça/gênero e a ideia de progresso a ferro e fogo. O caubói opera como rolo compressor, classicamente instalando a barbárie em nome de uma dita civilização. Junto são construídas as falsificações históricas. Hoje é sabido, por exemplo, que apenas seis ataques de indígenas foram registrados entre 1850 e 1890. Mas os índios são o “outro” a ser domesticado e civilizado à moda europeia.
Shohat e Stam observam que, além de deturpar a História, o faroeste foi criado com base numa salada estética. Nele, apontam os dois críticos, se juntam o épico clássico, a novela de cavalaria, o romance indianista, a ficção da conquista, as telas de George Catlin e os desenhos de Frederic Remington. Trata-se de um gênero de cinema que baseia nas formas narrativas mais populares e arraigadas no imaginário social. E a cereja do bolo é a ideia de “terra” a ser conquistada. Nada mais imperialista do que isso.
“A terra é fundamental para o faroeste. A atitude de reverência em relação às paisagens propriamente ditas — Monument Valley, Yellowstone, o rio Colorado — escamoteia a que a terra pertencia e naturaliza, desse modo, o expansionismo. A terra passa a ser considerada vazia e virgem e é, ao mesmo tempo, sobreposta pelo simbolismo bíblico — ‘a Terra Prometida’, ‘a Nova Canaã’, ‘a Terra Divina’”, dizem Shohat e Stam, no livro “Crítica da Imagem Eurocêntrica” (1994), hoje um clássico da análise de filmes.
Auge e declínio do mito
O fator estrutural do faroeste é a chegada do homem branco a um novo mundo a ser civilizado, porém de forma distinta do que ocorreu no colonialismo europeu. Era preciso não repetir os erros cometidos. Como nota Ismail Xavier, ao analisar filmes de John Ford, a conquista do Oeste dos EUA tinha a intenção de “superar as ‘doenças civilizacionais’ que teriam acometido uma Europa permeada de guerras de religião e perseguições das quais os puritanos fugiram em direção à terra prometida”.
Xavier aponta a permanência no faroeste, seguindo o pensamento mais amplo dos imigrantes, de uma narrativa bíblica forjada na ideia de “uma espécie Adão americano a cumprir a vocação de transformar o deserto”. O problema maior estava justamente no espaço vazio de um deserto sem leis, ao contrário do que exige a modernidade. Não por acaso, lembra o crítico brasileiro, um dos embates centrais do faroeste é a instauração da ordem da Justiça — tal qual nas tragédias do teatro grego.
Exemplar desse processo dito civilizatório é a trinca de filmes de John Ford, analisados por Ismail Xavier: “No Tempo das Diligências” (1939), “Rastros de Ódio” (1956) e “O Homem que Matou o Facínora” (1962). Essas obras narram a passagem progressiva da terra de oportunidades em tempos de New Deal (anos 1930) para o foco no ódio racial e na guerra de extermínio (anos 1950). O ponto culminante de Ford nos anos 1960 é a dissolução do gênero e o questionamento dos mitos fundadores.
“Dos três [filmes de Ford], ‘O Homem que Matou o Facínora’ é o metawestern por excelência, construindo a narrativa da mediação da voz de um herói fundador que vem revelar os fatos subjacentes à lenda, de modo a colocar em discussão o próprio sentido do gênero e suas implicações”, afirmou Ismail Xavier, no texto “John Ford e os heróis na transição no imaginário do western” (2014). A análise de Xavier seguiu a trilha do crítico Davi Arrigucci Jr, que aproximou John Ford, Guimarães Rosa e Jorge Luis Borges.
Oeste pelo avesso
Os faroestes da Netflix seguem o caminho do metawestern ao rever e desmontar as formas narrativas do gênero. “Vingança & Castigo”, por exemplo, coloca em cena uma legião de caubóis negros. Mas a grande subversão aparece na trilha sonora, toda ela composta com canções soul, funk e reggae. O título em inglês é “The harder they fall”, tirada da música do jamaicano Jimmy Cliff: “And then the harder they come/The harder they fall”. Sai de cena o Adão branco e conquistador (bárbaro) do deserto.
“Ataque dos Cães” avança no tempo ao colocar a história no século 20 e deixa, para trás, o período clássico retratado no velho faroeste. Dois irmãos mantém uma fazenda de gado no isolado estado de Montana. Um deles (George) se casa com a mulher que tem um restaurante na cidadezinha próxima e vive com o filho jovem (Peter). O rapaz é o avesso de um caubói, até por exibir claramente uma indeterminação sexual. É o que basta para reviver o desejo homoafetivo da “esfinge” chamada Phil, irmão de George.
“Relatos do Mundo” traz o ator Tom Hanks no papel de um viajante que vai de cidade em cidade para ler notícias de jornais da época. No caminho, conhece uma menina órfã, muda, e decide levá-la para uma nova casa. A trajetória deles mostra justamente o embate civilizacional no meio forjado na pura barbárie e violência. Ao invés do ressentimento de John Wayne em “Rastros de Ódio”, porém, surge a relação empática e afetiva de duas figuras largadas naquela selvageria que era o Oeste dos Estados Unidos.
A subversão completa do gênero ocorre na série “Godless”. Uma pequena cidade perdeu quase todos os seus homens que trabalhavam numa mina. A explosão do local deixou as mulheres viúvas. Então, começa a fundação de um matriarcado com outros valores e regras, incluindo relações com os indígenas da região e com uma comunidade vizinha de ex-escravos negros. O mal aparece justamente nas figuras do Adão branco que barbariza em todos os aspectos. Com a Bíblia na mão, os civilizados disseminam o terror.