Não tenho obrigação de provar para ninguém que fui feliz. Não me resta muito tempo. Há um excesso de Deus, de choros e de desespero enquanto afivelo o meu cinto. Tremendo azar: vamos cair e acabei ficando sem bateria. Espero que você leia isso, pois, é uma espécie de despedida redigida de forma improvisada. Um homem de boa alma, num derradeiro gesto de desprendimento e de generosidade, emprestou-me a sua Mont Blanc. Não a devolverei. Catei uma revista da Pandora Airlines e estou redigindo nos espaços em branco da contracapa. Tem uma foto de capa incrível com a Marina Ruy Barbosa vestindo um vestido longo, vermelho, com um rasgo enorme no meio das costas. A imagem de uma linda mulher não deixa de ser um alento num instante tão atribulado. Nem parece que vamos cair, mas, prossigamos. Temos um seguro, não se esqueça. Teremos um ao outro, mesmo na minha ausência. Que droga é essa? O que estou dizendo? Isso foi ridículo. Bateu uma espécie de banzeira e de mau gosto por aqui. Desculpe-me. Não me sinto tão inspirado como se estivesse escrevendo aquelas receitas de bulas para a Revista Bolo. Viver é tão veloz, querida. Parece um jato. O comandante tem uma voz idêntica à do Leonard Cohen. Se fechasse os meus olhos poderia jurar que era o Cohen em pessoa anunciando que estamos fodidos-e-mal-pagos e que o tempo estimado até o impacto da aeronave com o solo será de aproximadamente quatro minutos e onze segundos. Preciso terminar logo esta mensagem. As aeromoças — pobrezinhas — sumiram de vista. Não as culpo por sentirem medo de morrer. Sinto-me mais calmo do que o esperado para um sujeito ateu. Talvez, seja um tipo de catarse, de pavor enrustido. Veja bem, docinho, de minha parte, concordo plenamente que a Lua deva, sim, investir todas as suas fichas na carreira como bailarina. Não vai ficar rica, mas, aumentará em muito as possibilidades de se tornar uma adulta feliz. É o que conta. No mais, quem precisa de dinheiro saindo pelos ladrões quando se está despencando de uma aeronave lotada de passageiros com carreiras executivas bem-sucedidas? Quanto ao Céu, deixe estar. É a fase. Também já tive uma banda de rock quando era adolescente. Explique ao boy sobre as drogas, sobre o cancro, sobre ter bebês antes da hora e tudo mais. O rock nunca vai morrer. Eu, talvez, morra sim. As chances me são desfavoráveis. Sou fofo, mas, feito de carne e osso. Mais osso do que carne, você tem razão. Por favor, ria pelo simples fato de eu me mostrar espirituoso numa hora como essa. Sinceramente, fico pesaroso por não ter dito essas coisas pessoalmente, numa melhor hora, em terra firme, no tête-à-tête. Espero que alguém localize este bilhetinho nos destroços. Será a nossa caixa preta injetada de cores e de carinho. Cairemos sobre a Amazônia. Dá para acreditar numa coisa como essa? Mais um dano do ser humano aos índios e à floresta. Importante: as senhas dos bancos estão guardadas dentro do Buda. Não, Buda não é deus e você não está gorda. Pode acreditar. Tente não ficar muito acabrunhada. Também não precisa fazer uma festa depois do velório. Acidentes e sumiços repentinos são coisas que acontecem. Já não sinto medo de aviões, sabia? Sinto raiva. Muita raiva. Estou convicto de que esse governo medíocre e fascista vai passar por meio do voto popular nas próximas eleições e que voltaremos a ser, como escreveu o Millôr, uma nação com um enorme passado pela frente. O fundamental é que estejamos felizes. Juro que eu queria ver o presidente sentado lá na frente, na primeira classe, tomando tubaína quente e comendo pão francês com leite condensado. Seria um tombo de primeira, pode acreditar. Espero que você esteja se mijando toda com esta piada, pois, deve ser a última. Tudo bem. Chega de fazer melodramas. Lembre-se de mim como um palhaço sem um circo. Saiba, minha querida, que Dubai é uma bela de uma porcaria perto da Duna do Pôr do Sol. Devíamos ter voltado mais vezes a Jericoacoara. Cuide-se bem. Desculpe-me pelos garranchos. Está trepidando um bocado agora e já não consigo firmar a munheca. Beijos nas crianças. Diga-lhes que o meu estômago chega a se contorcer do tanto que as amo. Acabaram-se os espaços em branco. Termino por aqui. É verdade este bilhete: eu te amo. Espero que o encontrem intacto aos pés de uma velha maçaranduba. Ninguém derruba o meu amor por vocês. Com carinho, do seu, para sempre, John.
É verdade este bilhete: eu te amo
Eberth Vêncio
É escritor e médico.