Assumindo-se uma comédia sem maiores pretensões que não a de fazer rir — ou melhor, de entreter, já que se trata de uma comédia francesa —, “Mimadinhos” (2021) parte de uma boa premissa, nada revolucionária, mas original, levada com toda a cautela por Nicolas Cuche, tudo obedecendo a um ritmo que parece ter sido previamente estudado algumas vezes.
A inserção forçada de personagens em mundos que lhe são completamente alheios, onde eram apenas os que davam as ordens — muitas vezes sem observar mandamentos tácitos da boa burguesia, como gentileza, tolerância, classe —, situa o filme nos tempos gloriosos da Era de Ouro de Hollywood, em que produções como “Levada da Breca” (1938), de Howard Hawks, levantavam discussões acerca da natureza malfazeja do dinheiro, supostamente tão poderoso que seria capaz de corromper indelevelmente almas pias e torná-las tão vis a ponto de se perderem e lançarem à ruína todos ao seu redor, maldição que só o amor pode quebrar. Cuche não vai tão longe, mas sugere que os ricos, ou melhor, os muito ricos, precisam experimentar, de um jeito ou de outro, os dramas existenciais da maioria silenciosa que os circunda. E a forma escolhida para tanto em “Mimadinhos” pode até ser exagerada, invasiva, criminosa, se quiserem, mas funciona.
Francis Bartek é um bilionário que chegou ao principado de Mônaco vindo da Polônia com uma mão na frente e a outra atrás. À custa de muito trabalho — e boa dose de senso de oportunidade, claro —, tornara-se um magnata do mercado imobiliário. Bartek tivera um casamento feliz com uma mulher que o amara e lhe dera o suporte necessário, cuidando da casa e dos três filhos do casal a fim de que o marido garantisse a subsistência da família e cavasse os grandes negócios que o fizeram ascender tanto. Sua vida pareceria um conto de fadas, se sua companheira não tivesse morrido tão cedo e sua prole, Stella, vivida por Camille Lou; Philippe, do comediante Artus; e Alexandre, personagem de Louka Meliava, não fosse composta de rematados estroinas, sem talento algum a não ser gastar fortunas em Lamborghinis, vestidos Gucci e festas em que celebram sua futilidade e ostentam esse seu quinhão de poder. É justamente numa dessas festas que pinga a gota d’água que transborda o balde: Stella aproveita a comemoração de seu aniversário de 24 anos para pedir a bênção do pai para se casar com Juan Carlos, de Tom Leeb, um playboy argentino que se assusta quando o patriarca lhe pergunta em que trabalha. Vendo que as coisas vão mal, e tendem a piorar bem depressa, a patricinha muda o tom: agora não quer mais a aquiescência de Bartek; joga-lhe na cara que já é mulher feita, tem direito a parte da fortuna deixada pela mãe e vai subir ao altar com Juan Carlos, quer ele aceite ou não. É a reação do bilionário à insolência de Stella que dá azo à reviravolta do filme. Depois de sofrer um infarto em grande parte motivado pelo pouco caso dos filhos, por sua infelicidade profunda que nem toda a sua fortuna é capaz de contornar, Bartek leva dois meses arquitetando um plano que pode dar certo: fazer seus filhos acreditarem que seu patrimônio está prestes a virar fumaça, por causa da fraude tributária numa de suas empresas. E essa se torna uma das missões de sua vida, à qual se dedica com todo o afinco, atingindo as raias da perfeição ao contratar um batalhão de atores que se passam por agentes da Polícia Federal. Só resta aos Bartek se unirem, como fizeram em tantos dos convescotes luxuosos que promoveram, agora também na desdita, e rumarem para uma vila que o mais novo candidato a pobretão ainda mantém, em Marselha, cidade portuária no sul da França, tão encantadora quanto Paris, mas muito menos glamourosa.
Depois que Bartek toma o carro de um desavisado que passava nas imediações da mansão, de onde os quatro fogem como ratos abandonando o transatlântico que soçobra, valendo-se de um rifle velho — tudo parte do esquema, que pelo visto pode dar certo —, eles chegam à propriedade, caindo aos pedaços. A intenção de tentar dar aos filhos a lição que nunca conseguira, por sempre trabalhar demais, por estar sempre cansado demais, em vários momentos por negligência também, demonstra que talvez Stella, Philippe e Alexandre não estejam de todo perdidos, mas permanecerão bastante deslocados até que se acomodem ao novo cenário que a vida lhes apresenta.
Parece-lhes um absurdo, mas terão de ganhar a vida com o suor de seus rostos bem tratados, como o próprio pai faz ainda hoje. Por indicação de Matthias, de Joffrey Verbruggen, um conhecido da governanta Marguerite, vivida por Colette Kraffe, Stella vai ser faz-tudo num pequeno restaurante; depois de sonhar alto demais com o cargo de gerente sênior ao se inscrever numa agência de emprego, Philippe vai queimar um pouco do caviar acumulado transportando turistas numa bicicleta adaptada; e Alexandre a princípio só dorme, mas logo toma gosto pelas tarefas domésticas de que o pai o incumbe. A partir de então, “Mimadinhos” torna-se um conjunto de variações sobre o mesmo tema, magistralmente bem explorados, em que a graça reside não em se conjecturar sobre qual pode ser o fim dessa história, mas de que forma se vai chegar a ele e, o principal, quantas guinadas mais há de dar o roteiro de Nicolas Cuche e Laurent Turner.
A narrativa dá uns solavancos, alguns arcos não são desenvolvidos com o merecido esmero, se tem a impressão de que algumas subtramas ficam pelo caminho, mas o elenco coeso, o mote bem sacado e a direção talentosa desculpam essas escorregadelas. “Mimadinhos” tem mesmo cara de uma farsa moderna, mas que estimula discussões seriíssimas, sobretudo para pais do século 21, tenham ou não dinheiro. Rindo castigam-se os costumes, e, quem sabe assim a roda da fortuna gire para mais gente.