É fácil dizer sobre o que é “Vince Gilligan chuta o balde em “El Camino: A Breaking Bad Movie” (2019). O diretor soubera surfar a onda de produções que reviviam programas e filmes de sucesso do passado, e o que se tem em seu longa é uma feliz surpresa para os fãs da série originalmente transmitida pelo canal a cabo AMC. Gilligan, manifestando ímpeto comparável ao de seus personagens, banca seus direcionamentos inéditos para a trama e apresenta um filme autêntico, fiel à história que lhe deu azo, mas renovado.” (2019), quando já se tem alguma ideia quanto às intenções da história. Em “El Camino”, continua-se seguindo o arco dramático de Walter White, vivido por Bryan Cranston, e Jesse Pinkman, interpretado por Aaron Paul, desde que se conheceram, na estreia da série, em 2008, até o desfecho sangrento, cinco anos depois. Ou seja, se existe uma coisa que o filme de Vince Gilligan não faz é deixar o público na mão.
A moleza, contudo, para por aí. Propondo para seu trabalho o resultado meio grandiloquente de um epílogo à altura de um dos programas mais bem-sucedidos da história da televisão mundial — e aqui os níveis medianos de audiência são só um mero detalhe —, tanto para o enredo propriamente como para um de seus personagens de maior destaque, Gilligan teve de botar a mão na massa.
Evitando a qualquer custo cair na armadilha de fazer do filme uma extensão protocolar do roteiro de que nasceu, o diretor parece ter sido agraciado com um recurso dispendioso e cada vez mais raro na indústria para empregar em seu projeto: tempo. A narrativa retrocede com suavidade, a fim de refrescar a memória do espectador e reedita o argumento da participação fundamental de White no resgate de Pinkman, em poder de traficantes de metanfetamina nazistas, que queriam exclusividade no ramo. A alusão à experiência do protagonista enquanto sob domínio dos bandidos rivais é o fio condutor de “El Camino”.
Logo no início, se assiste a uma caçada e o alvo é justamente o personagem de Aaron Paul, a quem só resta pedir asilo, como um cachorro que se perdeu da matilha, a Skinny Pete (Charles Baker) e Badger (Matt Jones), dois colegas do submundo. Jesse intenta deixar Albuquerque, no Novo México, e fugir para o Alasca. Em resumo, o longa se desenrola em volta desse eixo no decorrer de seus mais de 122 minutos, a operação por trás de sua fuga — e de tudo quanto ela implica, como uma legião de policiais e uma horda de inimigos que o querem morto em seu encalço —, o que não faz de “El Camino” necessariamente um thriller. Na parte de caos que lhe cabe, a história adquire o caráter de um coming-of-age de Pinkman, visto como um sujeito irresponsável, com todas as emoções muito à flor da pele, sempre disposto a chutar o balde, como sugere o título da obra em tradução livre, mas que vai ter de segurar a onda se quiser se conservar vivo.
Valendo-se dos vários elementos que consagraram “Breaking Bad” durante um lustro como um dos produtos mais sofisticados da indústria cultural, “El Camino” redobra a atenção quanto a fotografia, design de som, montagem e, assim, supera a boa experiência visual da série. A sensação é que a reformulação não é só do personagem central, mas igualmente da própria história, que talvez até rendesse uma sequência. Consciente do poder imagético do cinema, Vince Gilligan traz para a tela a dicotomia de Pinkman, vagando como um monstro, uma criatura sem natureza muito bem definida, de uma locação para a outra, ora tendo a silhueta iluminada por faróis de carros, ora mergulhando nas trevas mais densas.
Aaron Paul transmite de maneira absolutamente orgânica, sem o menor esforço, os conflitos existenciais de seu personagem, dando a Jesse Pinkman a dimensão de que ele sempre deveria gozado na atração da AMC. Lamentavelmente, o ator nunca mais se encontrou na carreira, como se um papel dessa envergadura em vez de o ajudar a alçar voos ainda mais altos, o mantivesse acorrentado a grilhões. O traficante também se reveste de uma atmosfera mítica, de mártir, como se o sequestro fosse capaz de apagar todo o mal que praticara, como evidencia uma conversa em flashback com Todd Alquist, personagem de Jesse Plemons, passagem que dá suas preciosas contribuições para que se entenda melhor o filme. Entretanto, por outro lado, ele sabe muito bem quem é e não dispõe de tempo para lamentações ou delírios de grandeza. Talvez possa pensar nisso depois que chegar ao Alasca.
Os fãs de “Breaking Bad” reclamaram, e com toda a razão, de um possível esquecimento de Bryan Cranston quando da elaboração de “El Camino”, e o pior é ter de especular sobre qual terá sido o destino do infausto professor, que subira na barca do inferno de Pinkman justamente temendo as reviravoltas da velhice, das quais teria de defender-se, doente, contando só com os caraminguás da aposentadoria miserável. Chegava a ser comovente a química que os dois tipos desenvolveram na história, reproduzida num trecho de pouco mais de dez minutos, já no desfecho do filme, mas tudo tem de obedecer a um ciclo. Decerto White não voltara à história à toa; incorporando o superego de Pinkman, o personagem de Cranston até quer saber se quando o pupilo vai voltar para a escola, e o diálogo que se desdobra na sequência tem a força de uma revelação, ao descortinar boa parte do que ainda não se faz conhecer sobre o traficante. “El Camino” não tem o condão de decifrar todos os enigmas de uma trama apresentada ao longo de cinco anos, mas é muito mais que um suspense frustrado. Se se procurar um pouco, se vê que é poesia pura, malgrado torta, suja — ou talvez por isso mesmo.