As distopias estão na moda. E não apenas na política, mas também na literatura, veja você. Pode ser apenas masoquismo do leitor, mas também pode ser um ciclo autodestrutivo. Primeiro a pessoa lê ficções sobre lugares e tempos horríveis. Depois elege gente capaz de transformar a realidade em alguma coisa mais estranha do que a ficção.
Será que nossas construções mentais são invocações do mal? Depois de produzir dezenas de filmes de zumbis, a Califórnia acaba provocando uma praga de proporções bíblicas em Wuhan? Hã? Hã?
Ok, isso é especulação pra outra hora. Vamos falar de “Farenheit 451”, de Ray Bradbury, uma dessas distopias que jamais envelhecem, e que acaba de ganhar uma nova e belíssima edição pela editora Livros da Raposa Vermelha. A trama fala de uma sociedade futurista totalitária onde os livros são totalmente proibidos. Nesse mundo às avessas, os “bombeiros” são agentes do governo encarregados de queimar as publicações proibidas. O livro do americano Bradbury foi publicado em 1953, mas começou a ser escrito por volta de 1947, dois anos depois da Segunda Guerra Mundial. Eram outros tempos. O fascismo e o nazismo haviam sido derrotados e a democracia liberal emergira como a grande vencedora. Ainda havia o comunismo soviético do outro lado da Cortina de Ferro, mas esse era, digamos, um totalitarismo com face humana. Sem os soviéticos o nazi-fascismo jamais cairia e, além disso, a utopia marxista sempre foi uma cultura livresca. O socialismo é mais exercício intelectual do que um exercício prático, convenhamos. E os comunistas não queimavam livros em massa, como os nazistas. Eles apenas impediam que os dissidentes publicassem suas obras ou, na melhor das hipóteses, calavam a boca do revoltado com um bom empreguinho na vasta burocracia estatal. Alguns iam para os gulags da Sibéria, é verdade, mas isso nunca foi suficiente para abalar o charme daquele experimento social.
A distopia de Ray Bradbury mira mesmo é a extrema-direita fundamentalista, os destruidores da cultura, do pensamento e do passado. No distante 1947, ele jamais poderia imaginar que esquerda e direita se juntariam no século 21 para expurgar textos “desconfortáveis” ou “inadequados”, mostrando que o extremismo político é uma ferradura e que de cada lado só tem cavalgadura.
Mas há uma boa notícia nesse nosso vale de lágrimas. A nova edição de “Farenheit 451” é a mais bonita lançada no Brasil. O livro é ilustrado por Ralph Steadman, o inglês que ficou famoso como parceiro do jornalista gonzo Hunter S. Thompson na reportagem “Medo e Delírio em Las Vegas”.
Mas Steadman sempre foi muito mais do que isso. Ele é cartunista, escritor, artista plástico e cada desenho seu pode ser emoldurado e colocado num museu, de tão bonito que é. Os livros ilustrados por ele eram raros no Brasil, mas esse ano saíram dois: “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell (Intrínseca) e agora esse “Farenheit 451”.
Acredite: a obra de Ray Bradbury nunca foi tão bonita. E, lembre-se, é melhor ter uma distopia na estante do que uma de verdade instalada em Brasília