Uma história necessita de um eixo em torno do qual se desenvolvem seus conflitos mais importantes. Mas alguns filmes subvertem a máxima e uma trama se sobrepõe à outra, ao passo que uma terceira já está em gestação — cada qual abrindo uma trilha por onde o enredo vai caminhar.
“À Espreita do Mal” (2019) é um filme em que a ação transcorre toda ao mesmo tempo. Primeiro a narrativa se concentra sobre o desaparecimento de um garoto de doze anos, modalidade de crime que se replica num ritmo espantoso, sobretudo numa cidadezinha pacata, mas que já vivera dias de terror antes. O departamento de polícia local destaca o detetive Greg Harper para acompanhar o caso, mas o personagem de Jon Tenney não é exatamente o sujeito certo para a tarefa.
Enfrentando uma grave crise no casamento, Harper está completamente perdido. Sua mulher, Jackie, vivida por Helen Hunt, confessou um adultério recente, e o casal, além do filho, Connor, de Judah Lewis, até parece empenhado em superar o trauma, mas não tem ideia de como fazê-lo. À escalada de tensão são acrescentados novos degraus quando eventos inexplicáveis passam a se tornar rotineiros no cotidiano dos Harper. Ao receber um telefonema de Jackie, Greg demonstra uma fúria tão desproporcional que acaba lançando o aparelho contra a janela do quarto — é esse o ponto de desajuste em que está seu relacionamento com a esposa. O roteiro de Devon Graye insinua que ele solicita o reparo da avaria e quando o vidraceiro aparece, não está mais em casa. O homem faz o serviço e já estava saindo quando Jackie, que havia voltado, cruza com sua figura ameaçadora no corredor. Ele se identifica e diz que sua entrada no imóvel fora autorizada por uma garota, que se apresentou como filha do casal — ou seja, não há margem para especulações quanto a uma suposta retaliação do policial à infidelidade da terapeuta.
O trabalho de Graye, aliado à direção acurada de Adam Randall, prima pela sutileza e o verbo que eles conjugam mais assertivamente, até dada altura, é sugerir. O jogo que o espectador pratica consigo mesmo, de fomentar possíveis cenários que expliquem o desdobramento dos mistérios que tomam conta de “À Espreita do Mal” só não é mais estimulante porque resta apenas isso, um jogo. Tivesse o filme embarcado nessa de mala e cuia, valendo-se do efeito Rashomon a fim de apresentar as versões de cada personagem para as situações nonsense que se espraiam por todo o filme, esse argumento seria muito mais bem assimilado, e a história não ficaria tão falta de sentido em tantos momentos. A estratégia de Randall não se perde graças ao elenco carismático, que por seu turno pode se escorar em elementos técnicos essenciais num filme dessa natureza. O diretor de fotografia Philipp Blaubach sabe perfeitamente quando é hora de subir a luz, evidenciando a noção de há que alguma perspectiva de resolução de um dos anticlímax no horizonte, e o momento em que é imprescindível apelar para tons sombrios, como o azul-cobalto ou mesmo o negro profundo, quase absoluto, salientando que algum vácuo permanecerá ativo no contexto.
Do ponto de vista dramatúrgico, Helen Hunt, que dominara o longa até mais da metade, vai tendo de ceder espaço, especialmente para Libe Barer e Owen Teague. Os dois surgem na narrativa para pôr fim ao primeiro mistério de “À Espreita do Mal”, tornando-se onipresentes até o desfecho, instante em que vem à luz a maior reviravolta do filme. O arco dramático dos dois, por óbvio, fica comprometido — há sequências em que Adam Randall parece querer claramente correr um pouco com o filme —, mas Mindy e Alec desembarcam na produção bem a tempo de suprir a história com novas discussões. É por meio deles que o público toma pé da miséria emocional que é aquela casa, tão luxuosa que faz com que pareçam crianças num parque de diversões. Esse segundo ato se presta a dar outras nuances e outros caimentos à toxicidade que se espalha em qualquer um que habite o palacete, os dois intrusos, inclusive.
O casal de marginais toma parte do dia a dia da família e a decisão do anarquista Alec quanto a interferir diretamente nas vidas dos anfitriões — embora tenha sido Mindy a desencadear o processo, uma vez que resolvera atender o vidraceiro —, ligando a televisão mesmo quando Jackie a desativa e fumando no beiral do telhado, só de farra, termina por lançar o filme no caos sem fim em que a narrativa mergulha, com a solução do mistério do sumiço dos garotos da forma mais enérgica que se poderia imaginar.
A catalisação da ideia de dois indivíduos, um mais niilista que o outro, que se instalam nos vãos de uma família e passam a parasitá-la, até o momento em que se tornam verdadeiramente fundamentais a fim de vislumbrar alguma saída para um cenário tão doentio cala fundo ao remeter à máxima de que de perto ninguém é mesmo normal. E muitas vezes pode ser também um psicopata que passa por cima de qualquer conceito de princípio a fim de saciar suas vontades perversas.