Gênero americano por excelência, já faz algum tempo que o faroeste vem sendo traduzido sob pontos de vista completamente inéditos. E agora, chegou a vez de Jane Campion dar sua contribuição quanto a “macular” a reputação da categoria. “Ataque dos Cães”, trabalho da diretora lançado em 2021, subverte as histórias de caubói a começar do próprio personagem central em sua narrativa. Campion escolheu para o papel mais forte de seu filme o ator Benedict Cumberbatch, decerto um profissional muito talentoso, mas sem experiência nenhuma em tipos como ao que dá vida no filme. Conhecido pela performance de indivíduos sofisticados, algo esquisitos — como o matemático britânico Alan Turing (1912-1954) de “O Jogo da Imitação” (2014), dirigido por Morten Tyldum, ou Khan Noonien Singh, o vilão de “Além da Escuridão — Star Trek” (2013), de J. J. Abrams —, a menção ao seu nome numa produção como essa soa inadequada à primeira vista, mas a história não teria a força que acaba tendo se não fosse ele.
Phil Burbank é um homem deslocado. Sujo, cabelo engordurado, roupas amarfanhadas, é essa a sua ideia do que é ser homem, incorporada ao seu modo de ser ainda em tenra idade, graças a um tal Bronco Henry, a quem nunca somos apresentados, isso pela estética. Quanto ao que realmente importa, Phil é ainda pior. O rancheiro acredita que nunca terá problemas enquanto conseguir inspirar medo e, quem sabe, ojeriza entre os companheiros de labuta, quiçá para mantê-los a distância e se preservando de sentimentos contra os quais não tem a menor chance.
O contraponto ao personagem de Cumberbatch vem sob a forma de um irmão amoroso, compassivo, que lhe suporta os achaques, não retruca quando Phil o chama de “gordão”. George, uma composição igualmente minuciosa de Jesse Plemons, prefere falar baixo, ser gentil, ouvir. Os dois protagonistas batem uma bola redonda ao longo dos quase 130 minutos de filme, um servindo de escada ao outro, como o Gordo e o Magro sem o glacê cômico. Durante uma diligência em que se deslocam para vender os artigos que o rancho produz, param para comer no restaurante de Rose, vivida por Kirsten Dunst, e então se desenrola a sequência mais cenicamente rica de “Ataque dos Cães”. Phil nota as rosas de papel que adornam as mesas e supõe que tenham sido confeccionadas por uma mulher delicada como uma daquelas rosas, talvez uma tentativa de flerte com Rose. Mas ele não entende desse riscado; os enfeites haviam sido feitos por Peter, de Kodi Smit-McPhee, filho único da viúva que comanda o estabelecimento. Um sujeito como esse nunca pediria desculpas — uma sacada brilhante de Campion —, muito menos por apenas manifestar seu estranhamento a uma situação estranha pela própria natureza. Ao contrário: Phil dobra a aposta e se segue um festival de grosserias e preconceito, tão aviltante que Rose acaba caindo num pranto descontrolado. Depois que todos se retiram, até Phil — não sem antes resistir um tanto —, George se desculpa pelo irmão. O personagem de Plemons passa a fazer visitas cada vez mais frequentes a Rose e os dois se apaixonam. Algum tempo mais tarde, os dois se casam e os quatro, Rose e Peter, Phil e George, começam a viver sob o mesmo teto.
A essa altura dos acontecimentos, já resta claro no filme, uma adaptação de Jane Campion para a novela “The Power of the Dog” (1967), de Thomas Savage (1915-2003), nunca editada em português, o componente homossexual em Phil. Seu pouco tato com as pessoas decorre do fato de ter perdido Bronco Henry, o amigo por quem se apaixonara, e nunca ter sido capaz de digerir essa grande tristeza. É justamente Peter quem consegue identificar o problema e, a partir desse instante, o garoto enxerga em Phil o que Bronco Henry fora para esse seu contraparente a contragosto. Phil, por seu turno, também vai tendo o coração um pouco mais amolengado, se compadecendo do rapaz, querendo ensinar-lhe coisas. Inversamente ao que se tem em “O Piano” (1993), outra grande passagem do cinema em que o talento de Campion também se impõe, o envolvimento romântico entre Phil e Peter fica apenas subentendido, o que, por óbvio, se justifica em se considerando o contexto em que a subtrama toma corpo. Assim mesmo, o caso dos dois rouba as atenções, em especial por causa da forma como Rose se comporta frente à atração magnética de um pelo outro. A natureza perversa de Phil se manifesta mesmo quando a vida parece lhe dar boas razões para se emendar. Se antes o rancheiro via a presença feminina de Rose na casa em que morava sozinho com o irmão à luz de uma ameaça que precisava combater, agora o perigo é ele próprio, de forma que seu interesse sincero por Peter soa como uma vingança, detalhadamente estudada. Vilão tornado anti-herói, o caráter dúbio do personagem de Benedict Cumberbatch é a cobra que ele nietzschianamente fez de questão de agasalhar em seu peito, e que agora está prestes a envenená-lo.
Homem talhado para lidar com gado e cavalo, “Ataque dos Cães” realça o desajuste social de Phil que, claro, respinga em Peter. Ao fazer o desejo se valer da subjugação para poder maturar, o filme é uma das coisas mais intelectualmente perturbadoras já feitas em cinema. Só é uma grande pena que Jane Campion seja uma das diretoras mais bissextas da indústria.