Considerado pela crítica a melhor animação de 2021, novo filme da Netflix tem 100% de avaliações positivas

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O montanhista britânico George Mallory (1886-1924) foi um dos primeiros homens a desafiar publicamente a força da natureza. Mallory não se conformava em admitir que o monte Everest fosse apenas um maciço composto por quase nove mil metros de rocha e neves eternas, impassível na vastidão do Nepal, e em 1922 participou da primeira campanha oficial para subir a montanha das montanhas. Como se vê em “Viagem ao Topo da Terra” (2021), o que a empreitada pudesse ter de glamourosa, tinha também de complexa.

Baseado nos mangás de Jirô Taniguchi e Baku Yumemakura, a animação de Patrick Imbert se centra na figura de Mallory para contar uma história de superação, mesmo depois de frustração, fracasso, morte. Um introito rápido, em preto-e-branco, expõe parte do que se trata a história, uma tentativa de se desvendar o propósito de vida de gente como ele. Fukamachi Makoto, um fotojornalista japonês que registra paisagens inexploradas em Katmandu no começo dos anos 1990, é inserido no enredo quase por acaso. É por meio dele que o montanhista se fixa de vez na trama, quando alguém quer lhe vender uma câmera, mas não uma câmera qualquer: esta seria, de acordo com o sujeito que detém a posse do objeto, a câmera que George Mallory perdera quando de sua malsucedida incursão ao Everest, setenta anos antes. Temendo se tratar de um golpe, Fukamachi o enxota, para, na sequência, o roteiro de Imbert, Magali Pouzol e Jean-Charles Ostorero deixar o espectador ressabiado sobre se Makoto tomara a decisão certa ou fizera a maior burrada de sua vida.

Como no mangá, a história do filme ziguezagueia entre a ânsia por se entender Habu, personagem que mantém uma relação direta com a suposta câmera de Mallory, e a vontade de tentar explicar, pela própria experiência, por que alpinistas permanecem completamente seduzidos pela mera ilusão de subjugar a maior montanha do globo, inclusive Habu, um homem misterioso, que já tivera sua chance. O trio de roteiristas se revela uma equipe convincente ao abreviar os quadrinhos de Taniguchi e Yumemakura — um calhamaço de 1.500 páginas — e traduzi-los num filme sofisticado e coeso, de pouco menos de cem minutos. Evidentemente, muitas das subtramas que fornecem respiro à história central acabaram por serem deixadas de lado, o que ocorreu sem maiores traumas e, mais importante, sem prejuízo da audiência que o mangá alcançava anteriormente, feita não só de apreciadores do gênero, amantes do esporte ou de acadêmicos que se debruçam sobre a história da imprensa, mas desses três nichos, igualmente, o que testifica a pluralidade do trabalho de Imbert.

O mote do fotojornalista e do assunto principal de “Viagem ao Topo da Terra” — o desejo incansável do homem por reconhecimento, por deixar sua marca no mundo, a desesperada procura por algo que o faça ter algum vislumbre, mínimo que seja, acerca do tal sentido da vida — é o que eleva, com trocadilhos, a produção ao cume das emoções humanas. A beleza placidamente rústica do Everest se aproxima de quem assiste mediante takes desenhados com toda a cautela, cujo senso de realidade dá uma noção precisa acerca do monte como ele de fato é e do quão absurda vai parecendo a simples pretensão de querer se vencê-lo. O segredo por trás de Habu é desvendado à conta-gotas, e o personagem é encarado como uma espécie de protetor da montanha, igualmente se admitindo o raciocínio que lhe atribuiria o aspecto de um conselheiro de Makoto, que vive em seu subconsciente. Nem a acrofobia mais limitante é capaz de tirar o brilho da narrativa, ainda que em muitas circunstâncias fique realmente difícil se convencer de que exista mesmo alguém louco o bastante para se destinar, de livre e espontânea vontade, a uma aspiração tão pouco defensável quanto a de se meter a sujeitar feras milenares como o Everest a seus caprichos.

É uma lástima que trabalhos como “Viagem ao Topo da Terra” se revistam de uma aura experimental, como se se tratasse de um tema tolo, menor ou, na melhor das hipóteses, inacessível — menos para a legião de adolescentes que passa a endeusar o longa assim que dele tomam conhecimento. Com seu anime, Patrick Imbert dá uma resposta cortês (e precisa), que chacoalha a hegemonia asiática no ramo. Desde “A Viagem de Chihiro” (2001), de Hayao Miyazaki, também uma história de peregrinação plena de metáforas existenciais, não se via nada de semelhante apuro estético nas fileiras da animação para cinema. Parece que o mercado precisa de pelo menos duas décadas para se reoxigenar e voltar à superfície de fôlego renovado.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.