O Oriente continua a ser um dos grandes mistérios que o cinema tenta desvendar. Em “Nas Muralhas da Fortaleza” (2017), parte de uma história tão cheia de reviravoltas como de detalhes se deixa à mostra, expondo algumas das razões por que é tão difícil se compreender a visão de mundo de povos apartados do homem ocidental pelo espaço e pelo tempo.
Épicos adquirem dimensão verdadeiramente fantasiosa no cinema e é o que se dá com o filme de Hwang Dong-Hyuk. Os enfrentamentos pela soberania da Coreia, ameaçada por uma invasão chinesa em 1636, aludem a sentimentos que qualquer indivíduo em qualquer parte do globo é capaz de absorver perfeitamente; contudo, “Nas Muralhas da Fortaleza” se aprofunda acerca das possíveis consequências da subjugação estrangeira sobre uma nação que desde seus primórdios nunca se furtara a pegar em armas a fim de defender o que considera mais sagrado: o solo onde repousam seus ancestrais. Dong-Hyuk destrincha com sutileza os fatores que permitiram a ascensão da dinastia Qing, a última casa imperial da China, que se manteve no poder por 268 anos, entre 1644 e 1912. Composta pelos manchus, etnia minoritária e nômade vinda do leste da Ásia, a dinastia Qing leva oito anos até se estabelecer de fato, com a conquista de Pequim. Os Qing são responsáveis por feitos históricos ousados, como persuadir o imperador chinês Shunzhi a abrir frentes de batalha contra reinos contíguos e dominá-los. A escala de mando e tomada de territórios chinesa não encontra resistência, até se deparar com o rei Injo, vivido por Park Hae-Il, o 16° monarca coreano pela dinastia Joseon. Injo não se conforma em se submeter ao líder chinês, que dá seguimento ao seu plano de dominação e despacha seu exército para a Coreia, o que faz com que o rei e seu séquito se enclausurem na fortaleza Namhan durante um inverno inclemente, amparado por seus generais e conservando as linhas de abastecimento. Os guerreiros Qing logo sitiam a edificação, mas o que interessa mesmo em “Nas Muralhas da Fortaleza” acontece dentro do castelo, ambiente em que se desdobra uma queda-de-braço entre os integrantes do governo que apoiam os ministros Choi Myung-Gil (Lee Byung-Hun) e Kim Sang-Heon (Kim Yun-Seok), que tentam fazer Injo considerar a hipótese de entregar o príncipe herdeiro como refém, para que a usurpação de seu trono transcorra sem derramamento de sangue, e os que aconselham o líder a se preservar irredutível, tanto mais diante de exigência tão ultrajante e perigosa.
Adaptado do romance de Kim Hoon, “Namhansanseong”, de 2007 (sem tradução para o português), o roteiro de Hwang faz referência a episódios nebulosos para o espectador comum, mas resta clara a intenção de ressaltar o caráter traiçoeiro de Choi, ao passo que para Kim é reservada a aura de grande patriota, de todo consciente de que aquela era mesmo a melhor resolução a se tomar — e o desfecho do filme evidencia o quão dura pode ser a vida mesmo para um rei, sobretudo em tempos em que o mundo tinha outros parâmetros civilizatórios.
Hwang Dong-Hyuk recebera críticas por apresentar em “Nas Muralhas da Fortaleza” um trabalho de natureza indiscutivelmente revisionista, que se estende por um tempo inestimável sobre a questão política strictu sensu, quando deveria ter optado por dar preferência às cenas de luta campal em si. No entanto, quem se dedica a estudar a história da realeza coreana encontra no filme do diretor — subitamente celebre no Brasil graças à série dramática “Round 6” — mais que um ponto de partida. A produção, que se esmera em locações de tirar o fôlego, todas reais, figurino impecável, elenco competente e uma trilha sonora que sabe pontuar a narrativa como poucas, mérito do japonês Ryuichi Sakamoto, também presente em “The Revenant” (2016), de Alejandro González Iñárritu, tem a solidez intelectual de um pequeno tratado, sem, todavia, renunciar à sua intenção primeira de entreter.