Por tão ricos, alguns filmes podem ser entendidos de formas as mais distintas, cada uma ressaltando determinado aspecto de um roteiro complexo, repleto de metáforas, ilações ou meras insinuações. É o que se verifica em “Nós” (2019), em que o diretor Jordan Peele se vale de imagens com forte apelo sensorial para falar de assuntos que vão muito além do que se deixa perceber.
O introito de “Nós” remonta a 1986. Um casal desfruta de bons momentos com a filha num parque de diversões em Santa Cruz, no litoral da Califórnia, até que a mãe vai ao banheiro, o pai se distrai além da conta numa dos brinquedos e a menina se desgarra. Ela vai parar numa sala de espelhos, desativada, instante em que dá a primeira revelação, sutil, do filme.
A narrativa corta para os nossos dias. Os Wilson estão viajando de carro, rumo à casa que mantêm em Santa Cruz. Fica-se sabendo que a menina na sala de espelhos é Adelaide Wilson, vivida por Lupita Nyong’o, cujo desconforto em ter de voltar à cidade preocupa Gabe, o marido interpretado por Winston Duke, que tenta tranquilizar a mulher e assim não frustrar os filhos, Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex). Como Adelaide intuíra, eventos inexplicáveis tornam a se passar na praia, transcorridos mais de trinta anos, quando resolvem se despedir de Dahlia e Josh Tylers (Elisabeth Moss e Tim Heidecker) e Lindsey e Becca (Noelle e Cali Sheldon), suas filhas gêmeas, e voltar para a casa em que estão hospedados. É o momento da grande reviravolta de “Nós”, com direito a um jumpscare que contrabalança uma possível monotonia do filme na hora certa.
O argumento dos doppelgangers, figuras que reproduzem à perfeição a aparência física de alguém sem apresentar nenhum vínculo biológico ou remeter a experimentos científicos, escancara a natureza de terror em “Nós”. O roteiro, da lavra do próprio Peele, faz menção a um programa mantido pelo governo dos Estados Unidos que aprisionou duplos em túneis abaixo do solo — e aqui os mistérios confrontam a lógica: o filme nunca revela como nem para que tal empreitada tomara corpo —, já extinto. Essas criaturas se alimentavam de coelhos, por causa da reprodução acelerada desses animais (outra das finas metáforas do enredo), e agora, lideradas por Red, a sósia de Adelaide, voltam a se rebelar, indo à superfície a fim de exterminar suas matrizes.
A referência ao Hands Across America, iniciativa de caráter humanitário ocorrida em 25 de maio de 1986 que visava a sensibilizar os americanos quanto à necessidade da união de todos, independentemente de etnia, condição social ou credo, é, evidentemente, uma ironia sofisticada de Jordan Peele, decerto a melhor coisa em “Nós”. O primeiro movimento que os duplos fazem no intuito de mostrar que estão se preparando para o combate definitivo contra a humanidade é se darem as mãos, do mesmo modo que fizeram as pessoas que participaram da performance de mais de trinta anos. Os duplos, lidos à luz da psicanálise, seriam os tantos psicopatas que infestam a vida do cidadão comum, seja no trânsito, na escola ou na igreja, mas Peele não permite que a discussão morra no ovo, sendo resolvida dessa maneira tão simplória.
É assustador confessar, mas há um duplo em cada um de nós, mais acima ou mais abaixo de nossas frágeis consciências. Habitantes de nossa alma desde antes que nos formemos no ventre de nossas mães — e a partir de então, sai Freud e entra Allan Kardec (1804-1869) —, os duplos nos conhecem tão bem quanto só nos mesmos somos capazes de nos conhecermos, mas só se manifestam se assim o quisermos. Em “Nós”, resta implícita a ideia de uma espécie de vendeta dos duplos, em retaliação a todos os ultrajes que o planeta nunca deixara de padecer, mas o texto de Peele também faz questão de frisar o ponto do estigma da inadequação social, da devastação do preconceito, mesmo quando já se tem essa barreira aparentemente superada. Como na sequência em que Adelaide, aterrorizada, diz ao marido que quer voltar para o seu canto, que não se sente à vontade ali, uma casa de praia confortável, bem cuidada, luxo de que raros indivíduos que partilham da cor de sua pele usufruem.
Uma das muitas mensagens que Jordan Peele quis transmitir com “Nós” é que a luta do homem contra tudo o que renega em si — e deve continuar a desprezar, e a condenar — é um exercício contínuo, sem possibilidade de interrupção pelo bem do próprio gênero humano. O espírito nunca se decide de todo entre a iluminação e as trevas, e é por isso que cada um deve estar sempre pronto a combater o bom combate e deixar a luz entrar e vencer.