O filme frio e silenciosamente hipnotizante da Netflix que vai se alojar em seu cérebro como um parasita Divulgação / Condor Distribution

O filme frio e silenciosamente hipnotizante da Netflix que vai se alojar em seu cérebro como um parasita

Apesar de ter sido rodado em 2020, “Estranho Passageiro — Sputnik” tem raízes que remontam a mais de cinquenta anos. “2001 — Uma Odisseia no Espaço (1968)” continua a ser o filme definitivo sobre a incursão do homem noutras galáxias — embora se tente até hoje superar o gênio de um inspiradíssimo Stanley Kubrick (1928-1999), casos do mexicano Alfonso Cuarón, com “Gravidade” (2013), e do chileno-sueco Daniel Espinosa, que dirigiu “Life” (2017), realizadores talentosos e competentes em seu ofício, mas cujas produções acabam deixando a desejar sob alguns aspectos.

É o que também acontece em “Sputnik”. O argumento do filme de Egor Abramenko, a exemplo do que se passa com Cuarón e Espinosa, não prima pela autenticidade — malgrado seja difícil se inventar alguma coisa realmente nova e relevante no gênero, aqui os problemas se agravam um tanto, sugerindo até um possível plágio, sobre o qual me estendo mais tarde. No thriller russo, que teria muito mais identidade se assumisse desabridamente seu viés de terror, Kubrick vira uma pálida lembrança — quando justamente o elemento do pânico, como em “2001”, poderia tornar a história bem mais saborosa, quiçá reveladora. Abramenko acerta ao se concentrar em perseguições e no banho de sangue visto nas sequências em que se empreendem duelos entre o homem e o que tem de pior dentro de si — uma alegoria poderosa, mas que não se desenvolve a contento. Para não dizerem que não falei de flores, as performances, precisas, vibrantes, poderosas, são o que conferem alma ao projeto, nisso se distinguindo bastante da abordagem cartesiana de seus ancestrais.

Em 1983, no ponto mais alto da disputa pelo espaço entre Estados Unidos e União Soviética, a Orbit-4, nave que levava uma tripulação russa composta por dois astronautas, volta com um único ocupante vivo, Konstantin Veshnyakov, interpretado por Pyotr Fyodorov. Ele está desmemoriado e, portanto, a investigação a fim de se saber o que teria acontecido com o restante da equipe vai ser mais difícil do que se pensava. Veshnyakov permanece isolado numa instalação do governo, tratado como um criminoso, à espera de Tatiana Klimova, personagem de Oksana Akinshina, psicóloga encarregada de averiguar o que teria se passado e por que o astronauta se esqueceu de tudo quanto vivera ao longo da missão. Sem se preocupar muito com sutilezas como o contexto político e mesmo filosófico da trama, Abramenko revela que Veshnyakov trouxe mais alguém consigo, literalmente: trata-se de um organismo pluricelular que se abrigou em suas entranhas, motivo pelo qual permanece detido, sob escolta armada. Klimova entra em cena convocada pelo coronel Semiradov, de Fedor Bondarchuk, comandante da missão em terra, que lhe exige alternativas sobre como se poderia se separar a criatura do indivíduo que a aloja, e logo se fica sabendo que o intruso talvez não se trate de um parasita, mas de simbionte, ou seja, os dois se tornaram um mesmo ser. Eis o mote de “Sputnik”.

O filme não é fácil — e parece não querer sê-lo. Se o espectador deixar um pouco de lado o casalzinho platônico composto por Fyodorov e Akinshina, que domina grande parte do roteiro de Oleg Malovichko e Andrei Zolotarev, encontrará no tipo encarnado por Bondarchuk uma grata surpresa. O veterano, também diretor, dá a luz o típico militar austero, de personalidade autoritária, mas que, à primeira vista, se preocupa verdadeiramente com o destino de Veshnyakov. É por meio dele que se tem um vislumbre, ainda que pálido, do que era a União Soviética de quarenta anos atrás, um estado paranoico, em que cidadãos seguiam delatando-se uns aos outros por uma ração a mais de carne, como quando da ascensão de Josef Stálin (1878-1953) ao poder sessenta anos antes. No que respeita a Semiradov, Klimova está coberta de razão em desconfiar dele: o coronel é, além de um ufanista convicto — que não admite críticas à Mãe Rússia, por maior que sejam seus deslizes —, um representante aguerrido da filosofia stalinista, natureza monstruosa que sabe disfarçar muito bem graças a seu semblante plácido e quase doce.

Como já se disse, a representação do invasor que se instalara dentro de Veshnyakov, que aludiria à influência do resto do mundo sobre a Rússia — os Estados Unidos, em especial —, se perde. Por outro lado, Abramenko não deixa passar em branco a possível dubiedade moral do próprio hospedeiro. Em nome de maior destaque na carreira, o astronauta, viúvo, internara o filho em um orfanato, dando azo a também realizar o grande sonho de sua vida e ir singrar pelo espaço, enquanto a vida aqui embaixo soçobra. Dominando seu personagem sem esforço, Fyodorov se vale de gestos minimalistas e fala pausada a fim de evidenciar a angústia existencial desse homem, que sugere nem se importar mais com sua nova condição. Tormentos que são também de Klimova.

A anti-heroína igualmente tenta manter ocultos os esqueletos de seu armário, ao passo que equilibra sua saúde espiritual no fio tênue que aparta a mulher da profissional num meio altamente tradicionalista, machista e misógino como o governo soviético de então. O respiro para a personagem de Akinshina, que poderia vir embalado na ligação romântica com Veshnyakov, não sai do ovo. Imaturo, acovardado, remoendo um passado que o obrigara a tomar resoluções desumanamente complexas, o astronauta só consegue encará-la como uma cuidadora, uma irmã, no máximo, uma mãe, que o defende de Semiradov, um pai excessivamente rigoroso e, como, resta evidente, perverso — o que volta a lançá-lo em suas eternas elucubrações freudianas sobre em que medida suas aspirações profissionais se imiscuíram em sua vida íntima e terminaram por subjugá-la, arruinando-a não muito tempo depois.

Ao juntar a ideia da necessidade de se compreender o forasteiro de outra galáxia, outra civilização — que agora encontra-se amalgamado em Veshnyakov —, Abramenko suscita a importância do entendimento do problema do ponto de vista sociológico-filosófico. A estrutura que habita no astronauta tem a natureza muito particular de ser completamente desconhecida, enquanto passa a também integrar a fisiologia dele. Para ter alguma ideia do que vem a ser aquele corpo estranho, Klimova cede a seus ímpetos — não é nada simples dizer quem seria mais impulsivo, se ela ou se ele — e se oferece para entrar no ambiente em que a criatura fora encarcerada. Como se vê na sequência em que a doutora Louise Banks, a protagonista de “A Chegada” (2016), dirigido por Denis Villeneuve, se aproxima de seres extraterrestres que se deslocam para a Terra, também resguardada apenas por uma parede de vidro, o diretor russo deixa claro que talvez não haja mesmo nada mais a se criar em filmes de ficção científica com a viagem espacial como pano de fundo. A imitação só não é mais descarada porque Klimova, à diferença de Banks, rompe o casulo, vestindo uma roupa que a protegeria de ataques da fera — ao passo que Banks, vivida por Amy Adams, remove o traje.

Reitero: Egor Abramenko deveria ter priorizado o terror em sua história. É por meio do terror que se revelam as grandes verdades escondidas sob a frágil natureza humana, sempiternamente coagida por tristezas, aviltada por dores, limitada por traumas. As alegorias de “Estranho Passageiro — Sputnik” restam boiando na superfície de um caldo meio ralo, que nem aquece nem alimenta. Poder-se-ia ampliar o arco em torno do organismo que faz de Veshnyakov sua própria casa — de fato, um simbionte, como já se sabe a essa altura da narrativa —, também se inseri-lo no potencial contexto metafísico do filme. Essa massa de carne sob a forma de um inseto pantagruélico, versátil o bastante para se compactar num envoltório diminuto e ir parar no estômago de uma pessoa, é a materialização mesma dos incontáveis malogros de Veshnyakov, como cientista e, especialmente, como indivíduo. Mas haja bagagem para ler as vigorosas entrelinhas da trama. Lembrando o polímata francês Jean-Paul Marat (1743-1793), estamos sempre prontos a saciar a sede canibal do espírito com sangue.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.