Os brasileiros criaram ao longo de décadas uma série de imagens distorcidas a respeito dos vizinhos hispânicos e de si mesmos. Os mal-entendidos aparecem na política, no esporte e, também, no debate cultural. Se uma história qualquer no cinema ou na televisão é ruim, a conclusão é que se trata de uma “novela mexicana”. Os argentinos são vistos como padrão de excelência por conta de meia dúzia de filmes. Na mesma área, a fama do Brasil é a pior possível, pois seríamos inaptos e ruins de nascença para contar histórias cinematográficas.
Rilke tinha uma frase para descrever as avaliações que fazemos ao longo da vida. Segundo ele, “a fama é a quintessência dos mal-entendidos que se juntam a um nome”. Coleção de mal-entendidos é uma forma de explicar como os brasileiros avaliam os cinemas feitos aqui, na Argentina e no México. Há os mitos fabricados e os já bem consolidados. A imprensa deveria ser uma máquina de demolição de mitologias, mas se tornou a fábrica delas. Munido de ideias prévias, o espectador brasileiro se fecha e se recusa a priori a conhecer várias obras.
A situação mais distorcida por aqui é a do México, país associado ao kitsch cultural de produtos audiovisuais. Mas, se o parâmetro for prêmios e volume de bilheteria, ninguém na América Latina bate os cineastas mexicanos. Algo similar vale para a música pop e o rock latino, mas esse é outro capítulo. No cinema, basta citar Alejandro González Iñárritu (“Amores Brutos”, “Babel”), Alfonso Cuarón (“Roma”, “E Sua Mãe também”) e Guillermo del Toro (“O Labirinto do Fauno”). Isso sem contar o que os três fizeram diretamente em inglês.
“Birdman”, “O Regresso”, “Gravidade”, “A Forma da Água” e “Filhos da Esperança” são criações com a assinatura do trio mexicano em Hollywood. Esses filmes receberam o reconhecimento de público e da crítica nos últimos anos. Se olharmos por qualquer aspecto, os diretores surgidos no México ocupam o topo da qualidade cinematográfica na América Latina, bem acima de brasileiros e argentinos. A piada da “novela mexicana” é injusta e equivocada, portanto — assim como o uso do adjetivo “paraguaio” para qualificar um objeto falso.
Argentino para exportação
O chamado Novo Cinema Argentino (NCA), surgido há 30 anos, também alimenta um bocado de mitos. A produção é boa, mas o que chega ao Brasil é uma fatia minúscula. O boom de escolas de cinema, a moeda local nos anos 1990 que permitiu a compra de equipamentos de última geração, o público fiel de “películas” e, por fim, a estratégia de marketing no exterior. O resultado disso tudo foi a criação de um selo de boa reputação, baseada em divulgação orientada para certos mercados. Não há segredo, há um trabalho de mercado bem-feito.
A questão que fica é: argentinos são realmente melhores que brasileiros, mexicanos, chilenos e uruguaios para fazer cinema? Basta olhar o que já fez o pessoal do México para verificar a inconsistência da dúvida.
Se analisarmos mais friamente a qualidade dos filmes, a comparação entre os três países latinos faz pouco sentido. Cada local tem gênios criadores e obras “maestras”. Jamais houve na região, por exemplo, um cineasta com a ambição estética e política maior do que a do baiano Glauber Rocha, diretor de “Terra em Transe” e “Santo Guerreiro Contra o Dragão Maldade”. Alguém que realmente influenciou diretores do mundo afora e fez a diferença. Talvez apenas o cubano Tomás Gutiérrez Alea e o chileno Raoul Ruiz tenham alcançado igual prestígio.
O grande diretor argentino foi Fernando “Pino” Solanas, que morreu de Covid-19 no em 2020. Mas pouco se fala sobre ele no Brasil. Seus filmes (“Sur”, “Hora de los Hornos” e “Memorias de lo Saqueo”) podem ser vistos no YouTube, pois não estão nos serviços de streaming. Ele e o ator veterano Miguel Angel Solá têm mais importância do que o cineasta Juan José Campanella (“O Segredo dos Seus Olhos”) e o galã Ricardo Darín. No entanto, estes são os rostos célebres do Novo Cinema do país vizinho, e suas imagens estão frescas na memória do público.
Por razões de trabalho, conheci em 2014 a estrutura do INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales), a entidade estatal responsável por organizar a produção na Argentina. O órgão tem função similar à Ancine brasileira, porém com status maior, no que os americanos chamam de “soft power” (o poder cultural nas relações internacionais). Quem comanda o INCAA, tem papel equivalente ao de um ministro de Estado. No governo de Cristina Kirchner, os argentinos usaram, com força e dinheiro, os filmes do INCAA para projetar o país no exterior.
Aposta nos thrillers
Os argentinos fazem também muitas parcerias com produtores espanhóis, de olho no imenso mercado latino e até dos hispânicos nos Estados Unidos. O Brasil é alvo prioritário deles. O filme “Relatos Selvagens”, por exemplo, foi bancado pela produtora do cineasta Pedro Almodóvar. Outro aspecto estratégico: há um foco grande em thrillers psicológicos e policiais para exportação. É uma produção de forte apelo no mercado mundial, como se vê em “O Segredo dos Seus Olhos”, “Tese Sobre um Homicídio”, “Neve Negra”, “O Clã” e “La Misma Sangre”.
O formato de thriller é justamente um dos mais consumidos nos serviços globais de streaming. Isso explica, em grande parte, o acerto dos filmes argentinos em termos mercadológicos no exterior — uma coisa que o Brasil não explorou, deixando um vácuo na distribuição internacional. Problema: se quiser conhecer filmes de qualidade da Argentina, o espectador brasileiro tem trabalho dobrado para achar, por exemplo, as histórias de Lucrecia Martel (“O Pântano”, “Zama”) e de Maria Luiza Bemberg (da obra-prima “De Eso no se Habla”).
O filme de Bemberg tem maior relevância para o cinema do que “A História Oficial”, de Luis Puenzo, premiado com o Oscar de Filme Estrangeiro, em um momento simbólico de transição política para a democracia na Argentina. Revelou ao mundo a história da Mães da Praça de Maio — rendendo até música do U2. O Oscar é, porém, a maior vitrine global para qualquer país se projetar na cultura. Uma política agressiva do Brasil deveria apostar as fichas na premiação dos EUA. Nos grandes festivais (Cannes, Berlim, Sundance), os filmes brasileiros têm se saído muitíssimo bem.
Enquanto os argentinos colocaram os thrillers na linha de frente de sua produção, os brasileiros investiram nas comédias (“Se Eu Fosse Você”, “Minha Mãe é uma Peça”). No mercado cinematográfico, existe consenso de que filmes de humor são pouco exportáveis, o que cria evidentemente obstáculos para o Brasil no mercado internacional. Tampouco se fez por aqui uma estratégia de divulgação forte, como recomenda a experiência da Argentina. Nem mesmo nos países vizinhos os brasileiros conseguem emplacar sucessos de público local.
E o Brasil…
O obstáculo histórico para o cinema feito no Brasil é a distribuição: as pessoas não conseguem ver os filmes produzidos. A Argentina criou, por exemplo, leis para forçar a exibição das obras nacionais. Por aqui, a situação não se alterou com os serviços de streaming. Os filmes brasileiros encontram-se espalhados no mundo digital, e o cardápio é bem magrinho no Netflix, Amazon Prime, Globoplay e HBO Max. É preciso fôlego de pesquisador para ir atrás do que já se conhece. Se o espectador sequer ouvir falar do filme, a guerra está perdida.
Fora os mexicanos, o pernambucano Kleber Mendonça Filho é atualmente o cineasta mais celebrado da América Latina, devido à repercussão de “O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”. É um trabalho solitário dele e seus produtores. Dá para imaginar como seria diferente se houvesse suporte de um INCAA argentino para divulgar e vender a produção brasileira. O prestígio estético de Kleber pode ser medido com a edição no ano passado do livro “Três Roteiros”, pela Companhia da Letras, com a transcrição dos roteiros originais de seus três filmes.
Pode-se alegar que a obra de Kleber Mendonça Filho seja difícil para o público — uma avaliação errada contra os filmes brasileiros. Há um mito histórico de que não sabemos fazer roteiro. No entanto, esse mal-entendido jamais pode ser dirigido a “Como Nossos Pais”, de Laís Bodansky, e a “Rasga Coração”, de Jorge Furtado. As duas obras causam inveja aos argentinos: relações familiares complicadas, a atualidade do país, as crises geracionais, uma carga emocional que atrai todos os tipos de público. Não há mesmo do que se reclamar.
Um mestre em dramas elaborados é o cearense Karim Aïnouz, que tem suas referências no cinema autoral, mas que fica bem ancorado em histórias de apelo popular. Os filmes “A Vida Invisível”, “O Céu de Suely”, “Praia do Futuro” e “O Abismo Prateado” já o colocaram entre os principais diretores. Aïnouz tem outra característica relevante: faz parte de um grupo de cineastas que explora bem o mundo do Brasil interiorano e que não é mais o sertão do Cinema Novo brasileiro dos anos 1960.
Cinema pernambucano
O maior centro da produção cinematográfica no Brasil está hoje em Pernambuco — a terra que revelou o manguebit de Chico Science & Nação Zumbi nos anos 1990. Há uma política pública agressiva e ambição artística das mais alta. O destaque é, sem dúvida, Kleber Mendonça. O que impressiona é a qualidade técnica e a vitalidade dos demais diretores do estado: Gabriel Mascaro (“Boi Neon”, “Divino Amor”), Cláudio Assis (“Amarelo Manga”, “A Febre do Rato”), Hilton Lacerda (“Tatuagem”) e Marcelo Gomes (“O Homem das Multidões”, “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”).
Os diretores pernambucanos e Aïnouz trouxeram uma visão nova do Brasil — o cinema nacional sempre teve a intenção de registrar os movimentos sociais, políticos e culturais do país. O universo rural, a periferia das grandes cidades (no caso, Recife) e os novos sujeitos surgem em perspectiva diferente, se afastando dos retratos clássicos do sertão e da favela no cinema brasileiro. Ligados à imagem clássica da violência urbana ainda estão os sucessos de público “Tropa de Elite”, de José Padilha, e “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, os trabalhos mais conhecidos do público.
Diante do que foi exposto, acho que não há motivo para invejas e ressentimentos das pequenas coisas, na relação com os demais países da América Latina. Os argentinos têm lá seus defeitos no cinema também e abusam do gênero thriller. Os brasileiros não são ruins como se diz na praça. Devemos admirar as grandes realizações de lado a lado, as que interagem. Nada se compara a Hector Babenco filmando “Coração Iluminado” ou “O Beijo da Mulher Aranha”. Walter Salles Jr. fazendo “Diários de Motocicleta” ou Lucrecia Martel filmando “Zama” com elenco de brasileiros.