O mistério por trás de “Rua Cloverfield, 10” se reflete na própria confecção do filme. O trailer da produção dirigida por Dan Trachtenberg só foi aparecer dois meses antes da estreia, em 7 de abril de 2016. Umbilicalmente ligado a “Cloverfield: Monstro” (2008), de Matt Reeves, sem se vender como uma sequência deste, o trabalho de Trachtenberg tem identidade própria — embora o marketing siga dando as cartas de forma não muito sutil, mormente no cinema.
O plot do roteiro de Damien Chazelle, Matthew Stuecken e Josh Campbell não tenta reinventar a roda, mas não é por isso que a trama não vai ter grandes momentos. Thriller psicológico em que a fruição do suspense se dá com método, cartesianamente — a principal diferença entre o filme de 2008 —, aqui a tensão se desenrola a partir da exploração dos sentimentos dos personagens, um mais sufocado que o outro. Há uma gota de Hitchcock em toda narrativa desse gênero — ainda que muitos diretores nunca sejam capazes de o admitir —, mas adicionar o elemento de distopia apocalíptica, muito presente na obra do escritor britânico H.G. Wells (1866-1946), como em “Guerra dos Mundos”, cujo enredo foi rodado por Steven Spielberg em 2005, é a maior sacada que o trio de autores poderia ter tido.
“Rua Cloverfield, 10” é, sim, por óbvio, um spin-off de “Cloverfield: Monstro” (2008), com todas as ressalvas. Trata-se de uma outra história, de recursos narrativos muito mais sofisticados, que faz referência aos grandes clássicos do suspense. No filme, Trachtenberg leva à tela o argumento da luta pela preservação da vida e do embate com a morte iminente, conforme também se vê em “O Sétimo Selo” (1956), de Ingmar Bergman (1918-2007); e ao mencionar a subjugação da mulher que estuda uma saída para recuperar a liberdade, seria possível traçar um paralelo com a ideia central de “Rebecca, a Mulher Inesquecível” (1940), de Alfred Hitchcock (1899-1980). A releitura desses standards do cinema feita no texto de Chazelle, Stuecken e Campbell usa Michelle, vivida por Mary Elizabeth Winstead, para falar da mulher que não se dobra ao peso das circunstâncias, por menos felizes que sejam. Michelle vai parar no abrigo antinuclear construído por Howard, depois de um grave acidente de carro. Ela nunca o vira antes, mas mesmo assim, o personagem de John Goodman — que se prova um ator capaz de interpretar tipos igualmente brucutus, mas muito menos lineares como o Harry Brock da segunda versão de “Born Yesterday” (1993), de Luis Mandoki, ou Walter Sobchak, em “O Grande Lebowski” (1998), dirigido pelos irmãos Coen — diz tê-la salvado de um ataque químico que arrasou todo o mundo (e há uma razão para isso), o que a obriga a ficar isolada com ele. Ela, por evidente, não acredita na história e tenta se libertar, o que implicaria em experimentar perigo ainda maior do que permanecer refém de quem a teria ajudado a escapar da morte. Cada vez mais confusa, Michelle tem de decidir se sua liberdade vale tamanho risco, levando em conta o testemunho de um vizinho de Howard, Emmett, de John Gallagher Jr., favorável ao dono da casa, o que faz a protagonista dar aos dois um voto de confiança. E isso é o que realmente importa na trama central do longa, o que, por sua vez, dá margem para conflitos de outra natureza, como a misoginia crescente do anfitrião, sempre pronto a tentar exercer sobre Michelle sua personalidade despótica, cuja ideia de proteção se constrói justamente na possibilidade de alguma pérfida recompensa.
Nos segmentos finais de “Rua Cloverfield, 10” a presença de Michelle cresce ainda mais, dando a real dimensão do talento de Mary Elizabeth Winstead, que torna algo verossímil o desfecho da história que, como se disse antes, demanda alguma bagagem do espectador, ao passo que, mesmo tendo suas pitadas de Wells, Hitchcock e Bergman, é um filme contemporâneo. Tudo tem seu tempo.