Filme com Matthew McConaughey, ignorado pela crítica e pelo público, é um dos melhores suspenses da Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Filme com Matthew McConaughey, ignorado pela crítica e pelo público, é um dos melhores suspenses da Netflix

A inexperiência pode ser uma aliada de peso, especialmente em profissões em que a diferença entre um grande trabalho e um desempenho medíocre reside justamente na naturalidade. Isso é o que acontece, por exemplo, com Timothée Chalamet, astro desde sua estreia num papel de destaque, “Interestelar” (2014), dirigido por Christopher Nolan. Mas também há carreiras que vão sendo erigidas, muito parcimoniosamente, tijolo por tijolo, havendo a clara possibilidade de aquilo dar em muita coisa, inclusive em nada.

Richie Merritt, o protagonista de “White Boy Rick” (2018), ainda é uma promessa, uma promessa promissora — com a licença do pleonasmo —, mas uma promessa. Merritt seria capaz de emprestar tamanho realismo a personagens completamente distintos de Richard Wershe Jr., o tipo extremamente denso sobre o qual o roteiro de “White Boy Rick” se concentra, a exemplo do que faz Chalamet em “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), de Luca Guadagnino, “O Rei” (2019), dirigido por David Michôd, ou “Duna” (2021), levado à tela por Denis Villeneuve? Ou seu caso é o do típico ator de um único personagem, ou seja, por melhor que seja em cena, é melhor não lhe exigir o impossível? Só o tempo dirá, e dirá logo: Richie Merritt integra o elenco de “Clean” (2020), de Paul Solet, que ainda não veio à luz no Brasil.

Em “White Boy Rick”, o francês Yann Demange compõe um mosaico admiravelmente plural de Wershe Jr., o Rick Branquelo do título, um adolescente que se equilibra entre traficar drogas e manter o cômodo status de informante do FBI, o departamento de investigações federais dos Estados Unidos, ambas atividades muito lucrativas. O ponto forte do trabalho de Demange no filme é a verossimilhança da história, cujo mérito cabe em ampla medida ao principiante, tanto que veteranos do porte de Matthew McConaughey, que vive Richard Wershe Sr., o pai do personagem central, demoram a se fazer notar.

Merritt é tão convincente na pele do garoto a princípio ingênuo, mas que conforme vai se apercebendo da vida precária que leva, resolve entrar de vez no crime, convicto de estar tomando a decisão mais acertada de sua vida que o espectador chega a torcer por ele, querendo que se emende algum dia, claro. A premissa da desagregação familiar, explicitada com a sequência em que pai e filho comparecem a uma feira de armas em Detroit, até então a cidade mais importante do estado de Michigan, momento em que o rapaz presencia diversas infrações à lei, inclusive pelo pai (sem mencionar a quebra de determinados códigos morais, um detalhezinho insignificante), é a pedra fundamental da perversão de Rick. Pouco tempo depois, Snyder (Jennifer Jason Leigh) e Byrd (Rory Cochrane), membros do FBI, começam a achacá-lo, e a fim de preservar a liberdade de Wershe Sr., aceita tomar parte no acordo que os dois lhe propõem: comprar e vender entorpecentes, a fim de que os agentes, junto com o policial Jackson (Brian Tyree Henry), elaborem um plano para encarcerar os peixes grandes.

A partir desse ponto, vão se desdobrando os arcos dramáticos essenciais em “White Boy Rick”. A corrupção policial, a devastação provocada pela droga — que o protagonista acompanha de perto, ao observar o comportamento errático da irmã, Dawn, de uma Bel Powley em grande forma, que sai de casa por não suportar o pai e vai morar com Tyler (Lawrence Adimora), cenário em que sua dependência química se agrava —, os perigos do submundo, a falência do sonho americano nos anos 1980, a reprodução dos modelos de conduta absolutamente inadequados do pai são temas que adquirem vulto à medida que a história avança. Rick Branquelo se revela a criança que ainda é quando demonstra sua incapacidade de compreender a profundidade do sistema de normas tácitas da bandidagem, e é traído por um dos integrantes de sua quadrilha. Em 1988, Richard Wershe Jr. foi condenado à prisão perpétua, e só conseguiu o direito à liberdade condicional quase três décadas depois, em 2017.

Matthew McConaughey fornece o calço ideal para o trabalho de Richie Merritt. Sua tarimba, fundada na versatilidade já testada com sucesso em “Clube de Compras Dallas”, dirigido por Jean-Marc Vallée, e “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, ambos de 2013, faz o personagem do novato funcionar, como um aviso para o público de como se evitar chegar a uma situação parecida. “White Boy Rick” é um filme de personagem, com um protagonista feito sob medida. Oxalá Richie Merritt também se mostre tão preciso sob outras perspectivas.


Filme: White Boy Rick
Direção: Yann Demange
Ano: 2019
Gênero: Crime/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.