Brincando em cima daquilo, falando de musicais e da mágica por trás deles, Lin-Manuel Miranda sugere ao público um jogo metalinguístico cujo terceiro participante é um dos maiores talentos dos espetáculos da Broadway.
A narrativa de “Tick, Tick… Boom!” (2021) vai e volta, ora retratando a vida pessoal de Jonathan Larson (1960-1996), ora se concentrando em seu processo criativo, ainda que seja impossível dissociar uma do outro. Vivido por Andrew Garfield com sua competência usual, a produção de Miranda se presta a uma retrospectiva da curta vida de Larson, entremeando nas sequências que registram a angústia de uma vida meio besta, defendida com a ajuda de um subemprego medíocre e, em muitas situações humilhante — sobretudo quando se reconhece dotado de uma qualidade que os demais não têm —, seus momentos de catarse artística, em que consegue por para fora seus anseios e transforma a opressão da existência em canções. O embate entre Larson e seu espírito atormentado, de um artista desconhecido que ansiava por se fazer notar, por ser valorizado por seu verdadeiro ofício, como se sentisse que para ele o tempo, a exemplo do que acontece um filme de ação ruim ou num desenho animado inconsequente, menos elástico que para os outros, era regido pelo compasso de uma bomba-relógio — daí a referência ludica de Miranda à onomatopeia do título —, é o grande mote de “Tick, Tick… Boom!”, registro dos bastidores silenciosos e torturantes da composição de um musical sobre um musical. Uma espécie de prelúdio de “Rent”, levado à cena em 1994, um dos shows de maior prestígio na Broadway ainda hoje.
Miranda viu “Rent” em 1997, ao celebrar a passagem de seu 17º aniversário. Foi quando entendeu, afinal, que musicais poderiam se estender sobre coisas muito menos grandiosas que os conflitos éticos de uma vedete dividida entre dois amores em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como em “Cabaret” (1972), ou de um nonsense incomodamente transformador, mostrando a cadeia como cenário para duas assassinas dos anos 1920 revelarem suas aspirações, caso de “Chicago” (1975). Musicais também são capazes de dar voz ao homem comum, especialmente àquele que tinha tanto a dizer. Anos depois, já na Universidade Wesleyan, em Connecticut, lhe veio a inspiração para o texto de seu primeiro trabalho no gênero, “In the Heights” (2005), cuja história transcorre num dos tantos bairros da Nova York em que nasceu, em 1980. “In the Heights” foi o vencedor do Tony, o maior prêmio para espetáculos teatrais dos Estados Unidos, em 2008.
Andrew Garfield capta com muita sensibilidade a ideia de finitude, de urgência da vida — que em Larson era ainda mais pulsante —, amalgamando à personalidade forjada pelo sofrimento do compositor uma base de confiança, que por sua vez escondia-lhe a grande ambição que o fazia viver: tornar-se famoso por seu dom e conseguir manter-se a partir dele. A instabilidade emocional de Larson — incapaz de conduzir o namoro com Susan, de Alexandra Shipp, ao passo que também acaba perdendo Michael, papel de Robin de Jesús, o amigo de infância com quem mora — torna-se o gatilho para que ele resolva situações fundamentais em sua carreira incipiente ao mesmo tempo em que perde o controle sobre sua intimidade.
Aludindo a quadras memoráveis da vida de Jonathan Larson, a exemplo do contato (ainda que nada próximo) com Stephen Sondheim, o maior artista vivo do teatro americano, a quem homenageou com “Sunday”, uma menção à “Sunday in the Park with George”, de Sondheim, “Tick, Tick… Boom!” não desaponta nem mesmo quem esperava ver no protagonista a aura de grande autor, mas só encontra o homem imaturo, egocêntrico, perdido em seus devaneios criativos. No mínimo, se percebe que essa é uma história de um sujeito comum, digna de ser contada. Os artistas também sofrem.